quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Retratos (19) - Interrogativamente

* Victor Nogueira
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Telefonei-te, porque desejava falar contigo, ouvir-te, acalmar a contrariedade. De lá veio a tua voz tímida, pequenina e depois ... depois o silêncio, o "não percebo o que queres dizer", o "então deixa-me." Mas eu não queria magoar-te, apagar o teu sorriso bom e alegre, de salta-pocinhas que amo, no silêncio do meu quarto, e que perco tantas vezes. Parece me importante que as pessoas ajam com inteligência, procurando dominar os acontecimentos e as palavras e não serem dominados por eles. E não é isso que me está sucedendo. Mas queria-te também mais senhora de ti, lutando pelo que te diz algo. Daí as pedras que semeio ou em que por vezes transformo aquilo em que toco. De ti saberei apenas que esperas de mim amizade e compreensão (e talvez também ternura) Seremos capazes de dar isso um ao outro? Que é realmente importante? A nossa relação só tem razão de ser se for fonte de liberdade e alegria, para nós e para quem nos rodeia. Que não se transforme em pesadas cadeias pantanosas. Seremos nós capazes disso ? Estará certo o nosso caminho ? Seremos ambos capazes de reconhecê-lo ?
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A resposta busca-se no presente que me desagrada, sem saber em quem, onde e como encontrá-la ! E no entanto pareceria tudo tão fácil, amiga. Soubesse eu mais de ti. Fosse eu menos impaciente !
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Somos nós e não só eu quem deverá decidir do futuro da nossa relação. (MCG - 1973.04.08) Évora

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Retratos (18) - D. Camilo, o Grande

* Victor Nogueira
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D.Camilo, o Grande
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O Camilo é um tipo lixado para trabalhar: deixa tudo para a última da hora - ainda é pior que eu - não tem horários normais e uns dias elabora esquemas transcendentes e complexos, para no dia seguinte, com o moral embaixo, mandar tudo à merda, porque não pode ser tão perfeito como imaginara. Sei que ele anda chateado e compreendo porquê. Sei que a vida desgovernada que leva não o favorece. Mas daí que passe a vida com racionalizações e justificações - que já não me convencem - para nada fazer porque não é como quer, bolas para isso. O resultado de tudo isso é que me vejo forçado a conceber, redigir e dactilografar todo o trabalho. Também por burrice minha. Porque devia marimbar-me para a sua casmurrice e não ter contrariedade nenhuma em obrigá-lo a trabalhar, malgrado a sua contrariedade.
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Com mil diabos. Passa os dias no café na conversa. Hoje faltou à aula de Planeamento [Social]. Serviu de pretexto o seu cansaço. Que ia para casa dormir. Chego ao café ás 6 da tarde e estava no paleio com o João Luís. Pergunto-lhe quando poderia redigir a introdução, que lhe competia, e respondeu-me com montes de justificações. Dizia que estava cansado e chateado, e pronto. Agora vir para ali com montes de justificações irritantes, porque despropositadas e improdutivas!... Enfim, bêbedo de sono, projectava ir à noite ao cinema e não sei quando para Beja. Que só poderia trabalhar amanhã à tarde. E entretanto, eu que me lixe. Sim, com o trabalho para enviar amanhã para Lisboa, ou redijo hoje tudo o que falta, ou mando assim mesmo ou espero que ele se digne arranjar disposição para trabalhar. Não lucro nada em irritar me, por contraproducente, mas aquele tipo podia ser um pouco mais realista, deixando se de evasões quando é preciso trabalhar. (MCG - 73.02.06) Évora

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Retratos (17) - L'arroseur arrosé

* Victor Nogueira
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Ontem o Diogo Fialho fez anos e fui apanhado para a festinha do costume. Como não podia deixar de ser alguém tinha de entrar pelos copos em mistura. Quem estava mais à mão de semear e convencer foi a Eglantina (com dois cálices a alegria extrovertida natural dela aumentou) mas a brincadeira saiu-me cara que ela só bebia se eu acompanhasse, e o cretino do Diogo Guerreiro (agora muito loquaz) enchia também o meu copo, em vez de disfarçar. Resultado: o estômago a arder - estou mesmo velho - e toda a ceia fora. O riso saiu me, pois, caro. (MCG - 1973.01.23) - Évora

domingo, 28 de outubro de 2007

Retratos - (16) - A toca da Margarida

* Victor Nogueira
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Na sua aconchegadora toca
rodeada dos seus amores
a Guida
com Bach e Beethoven
com as "humanidades"
com a Poesia
(POE - 1971.07.24) (1)
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Enquanto o Carlos fazia os seus estudos de piano e o Camilo vasculhava a secção de poesia da Margarida, (2) eu peguei numa folha que estava na camilha (3) da toca da Guida e fui rabiscando, com a caneta do Chico Bellizi, um pintor brasileiro de que terás visto comigo uma exposição no Palácio D.Manuel. Quando a Guida chegou ficou muito preocupada, não fosse eu estragar a caneta ao "queridinho". Mas é muito fácil desenhar com uma caneta daquele género. Tem um traço muito fino e sensível, contrariamente, por exemplo, à Pelikan com que estou escrevendo. (MCG - 1972.11.07)
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1 - Do poema "á Guida sem amor hoje", escrito em 1971.07.24
2 - A Margarida tinha estudado em França e depois viera para o ISESE. Era muito mais velha que nós e na casa dos pais tinha um quarto com pé direito baixo e óculo para o passeio com arcadas, sala que era o cenáculo dos intelectuais lá do sítio, onde eu fazia por vezes papel de elefante numa loja de porcelana. Era uma espécie de mãe com os seus pintainhos. Disso dá conta um dos meus poemas: À Guida, sem amor, Hoje.
3 - Mesa redonda, coberta, com braseira em baixo, ao centro,

sábado, 27 de outubro de 2007

Retratos (15) - Os deleitos do Camilo

* Victor Nogueira
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Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar ás longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)
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Mas eu já estou calejado demais para trovejar como o Camilo ou ficar com a lágrima ao canto do olho como o Carlos. (MCG - 1972.10.18)
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Já devia ter me levantado para cerrar a janela escancarada, através da qual entram não só o frio como os alegres e rápidos acordes duma qualquer composição para piano que um dos co-hóspedes do Camilo põe a tocar frequentemente. (MCG - 1972.11.08)
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Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser o 3º testamento, nesta tarde. (...) (MCG - 1973.01.16)
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Passa os dias no café na conversa. Hoje faltou à aula de Planeamento. Serviu de pretexto o seu cansaço. Que ia para casa dormir. Chego ao café ás 6 da tarde e estava no paleio com o João Luís. (...) Não lucro nada em irritar me, por contraproducente, mas aquele tipo podia ser um pouco mais realista, deixando se de evasões quando é preciso trabalhar. (MCG - 73.02.06)
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Passo agora horas seguidas a escrever, quer rascunhos manuscritos, quer dactilografando. Há pouco o Camilo berrou me ali da casa dele para eu deixar de escrever à noite, pois está farto do tac-tac da máquina [pela noite dentro]. Mas cá em casa ainda ninguém se queixou. [A casa dele ficava na Rua dos Mercadores, o quarto dele na direcção do meu, avistando se os terraços de ambas as casa] (MCG - 1973.04.14)
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O Arcada é um zum-zum de vozes e louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando comunica-me um ou outro dos diálogos da peça. (MCG - 1973.06.08)
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O Carlos e o Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira lhes a vida e o ser !!! (MCG - 1973.07.03)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Retratos (14) - De balde procurando emprego

* Victor Nogueira
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Évora, já em tempo normal de aulas é de um tédio estupidificante, assustador. Pensei arranjar um emprego, mas aí começam as dificuldades, pelo menos pensando em termos de Évora. Inscrevi-me no Serviço Nacional de Emprego, (por descargo de consciência, mas sem grande esperança), e no Liceu (há uma vaga para professor de Geografia do 4º, 5º e 7º anos). (NSF - 1971.11.17)
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Baldadamente tenho procurado emprego. Um lugar de professor de Geografia no Liceu ardeu, por falta de cunhas. Um lugar de professor de Matemática na Escola de Regentes Agrícolas de Évora (à falta de Engenheiros Agrónomos interessados) é uma possibilidade a confirmar (ou não) na próxima semana. Um emprego junto dos serviços profissionais possibilitar-me-ia ir preparando o trabalho de fim de curso. Traduções ou explicações são outra hipótese para melhorar a minha (crónicamente) desiquilibrada situação financeira. Outras poderiam surgir ou ser encaradas, mas o caracter eventual que têm de assumir, (quase) forçosamente, é uma grande dificuldade. (NSM - 1971.12.09)

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Retratos (13) - Daqui desta terra

* Victor Nogueira
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Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou! (MCG - 1972.09.21) - Évora

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Retratos (12) - Dia do correio

* Victor Nogueira
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São 12:30. [Em Paço de Arcos] ouço o portão chiar e assomo à janela ... e não vejo ninguém (Algum miúdo que entrou e saiu, penso eu). Mas eis que batem com a aldraba na porta. Abro-a e lá está o carteiro no gesto habitual, mão estendida com as cartas (hoje, apenas carta!) Cumprimentamo-nos e agradecemos mutuamente. Fecho a porta. Regresso à sala de estar, pego na tesoura para abrir o sobrescrito, que resguarda as notícias da Celeste. "Olá, mocinho! Tenho apenas 21 anos dizem-me (a idade das, de algumas liberdades consentidas) ... " e continuo numa surpresa crescente, como a quem se revela numa faceta até aí ignorada. Todo eu sou uma crescente surpresa estupefacta! Apago o gira discos - que transmite canções do Nelson Eddy. Estou agradavelmente surpreendido e preciso de concentrar me para perceber isto tudo, estas linhas inabituais. Volto ao princípio. Releio com os olhos, com a inteligência, com sofreguidão, com todo o meu ser, para aperceber me duma Celeste desconhecida. Surpreso, não tanto pelo conteúdo, mas pela forma, pela linguagem invulgar (nela). É verdade que há alguns "senãos". (Não me apercebi ainda, p.exemplo, que ela soubesse que existe uma "certa técnica" aprendida, de beijar). Continuo a ler e, repentinamente, tudo se desmorona, numa enorme decepção. "Não Victor, tens razão, o palavreado não é meu ... "
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Resta-me pois saber como é a personagem dum conto de [Urbano] Tavares Rodrigues com quem te queres identificar. É uma curiosidade desenganada que fica em mim. (MCG - 1972.09.06) - Paço de Arcos

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Retratos (11) - Mestre «Cuca» I

* Victor Nogueira
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Estou com um grave problema, pois já me esqueci das recomendações das minhas tias (eu bem lhes disse para deixarem-mas escritas): será que as batatas se põem ao lume durante 15 minutos? E quanto ao feijão verde? Deita se no tacho quando a água ferver. E depois? Continua? Apaga se o lume? Bem, o que for se verá! (MCG - 1972.08.23) - Paço de Arcos
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Nota - Agora já sei cozinhar !!! Não acreditam? Combina-se um almoço mas a sobremesa fica por conta dos/das descrentes. Mas há lugar também para quem não for descrente :-)

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

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Esta série transitou de Ao (es)correr da pena e do olhar - Ao (es)correr da pena e do olhar (7)

Retratos (10) - A malta de Luanda

* Victor Nogueira
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Para além disso tenho me encontrado com a malta conhecida [em Luanda]. Alguns dos meus tempos de menino e moço. O Pedro [Andrade Ferreira], o homem das mil e uma ocupações: locutor e produtor radiofónico, futuro controlador de tráfego aéreo do Aeroporto de Luanda, estudante no Instituto Industrial de Luanda. No fundo um miúdo falador e sonhador de 22 anos. Sonhador como a irmã, a Leonor, um ano mais nova. Uma paz de alma cuja indecisão me irrita. Estudante no Instituto Industrial, há três anos queria ir para Engenharia, o ano passado para Medicina, este ano para Arquitectura., se passar agora nos dois exames de 2ª época [Passou!] No fundo ambos querem dar o salto, i.e., saírem de casa, mas não têm coragem, parece-me. Temos depois o João [Coimbra] (tão diferente do miúdo que foi meu vizinho!) e a Estrela [irmã dele]. Admiro a, porque tendo muito mais problemas familiares, com que sofria, entrou para o Liceu depois de mim (tem 22 anos) e terminou o ano passado o curso de Germânicas. Como a Inês, (irmã mais nova do Pedro) e o nosso criado [o Fernando] são quase os únicos que ainda me chamam como antigamente: Vitó.
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De todos eles é com a Estrelinha que estou melhor, talvez por termos mais experiências recentes em comum, já que convivemos aí na Metrópole quando estive em Lisboa.
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As idas à praia, as corridas de automóveis em miniatura, os jogos de cartas, "os polícias e ladrões", as zangas, as colecções de autógrafos, tudo isso já está tão para trás, que quase não consegue dar calor e vivacidade às nossas relações de agora.
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São estes os da geração antiga, quase desconhecidos; por retraimento, uns (Leonor), ou por falta de convivência (João). Quanto ao Pedro, os nossos interesses são manifestamente diferentes.
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Temos depois os novos: o Nuno, licenciado em Económicas, que me aturou algumas neuras nos meus tempos de Lisboa, e a Ana Maria que, minha companheira na cantina de Económicas, à mesa, casou com ele o ano passado. E a Maria Antónia, agora ausente na Metrópole. (...) Gosto de conversar com ela, talvez pela ingenuidade e naturalidade dos seus 18 anos e da cordialidade das nossas relações, embora me aborreça um certo ar de "mais velho" que assumo. Penso que talvez funcione para ela com um - eu diria - irmão mais velho com quem fala à vontade de assuntos ... que normalmente me habituei a não abordar!
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Todos estes e tantos outros fazem me sentir o desconforto do meu exílio em Portugal, mais precisamente em Évora. Estou cansado dele! (NSM - 1971.12.01/03)
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Hoje estou com uma grande melancolia. Veio me à memória o passado, esse passado que é apenas memória. Lembrei me da Fátima Marques, que encontrei ontem no Rossio, em Lisboa, ao fim de quatro anos. Das notícias que me deu da Cristina e do pimpolho que lhe nasceu há dias. Fiquei contente por nos vermos ao fim de tantos anos e falarmos como se nos tivéssemos deixado na véspera. A Fátima e as suas novas trazem me à consciência a malta do Liceu em Luanda. Que é feito deles? Tantos deles? Alguns que ainda vejo de vez em quando [alguns ao virar duma esquina em Lisboa] - os amigos desde os dez anos; do Liceu (o Jorge Zamith e o João Seabra) ou da vizinhança (o Pedro, a Leonor, o João e a Estrela). Que é feito dos outros: o Rui Branco, o Victor Morgado, o Pepe, o micro Torres, a Isabel Franco, a Teresa Soares, a Teresa Melo, o Barradas de Oliveira, o Costinha, o Bustorff ... Tantos eles são! O tempo das "guerras" nos morros junto ao Liceu ou dos polícias e ladrões! Onde está o tempo mais recente das reuniões debaixo da [enorme] árvore, no Liceu de Luanda, junto ao campo de hóquei? (MCG - 1972.09.06)

domingo, 21 de outubro de 2007

Retratos ( 9) - Salut, camarada!

* Victor Nogueira
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Se puede enganar
a todo el pueblo
parte del tiempo
Se puede enganar
a parte del pueblo
todo el tiempo
pero no se puede enganar
a todo el pueblo
todo el tiempo.

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(Lincoln)
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Aqui está a minha esperança! Nós venceremos. Mesmo que eu seja derrotado ou me venda, outros tomarão o meu lugar, empunharão o estandarte! Algum dia venceremos! Algum dia! Salut, camarada! (MCG - 1972.08.13)

sábado, 20 de outubro de 2007

Retratos (8) - Breve história dum miúdo: o Jorge

* Victor Nogueira
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Em 5 de Abril de 1971 escrevia eu: "Sábado fui com o Jorge ao cinema, ver um filme de desenhos animados com o Asterix. Pois bem, o miúdo pulava e ria se, enfim, era um espectáculo. Gosto dele, só tenho pena ... que não estude. Tem me oferecido rebuçados, uma daquelas bolinhas de plástico que saltam muito e até me chegou a pagar o jornal ! Há dias apareceu-nosno café [Arcada] todo eufórico. Tinha ganho algum dinheiro e então comprou um cinto com uma espada de plástico, postais, maçãs e ... um copo. Enquanto não mostrou a espada a toda a malta sua conhecida não descansou. Queria também que aceitássemos as maçãs dele e os postais. Quem não gosta da brincadeira é a D.Vitória [Prates, minha hospedeira na Rua do Raimundo]. Um novo desenho existe no meu quarto, mas esse foi oferta dum outro miúdo, o Carlos. (MCG - 1971.04.05)
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Nas minhas deambulações de hoje encontrei a Lídia e o Jorge. Este andava à procura de dez tostões para o cinema - eu fiz que não percebi a indirecta; informou me que esteve em Beja a trabalhar no circo e à minha observação sobre a sua magreza retorquiu "É da fome que passo." (e que não está em mim remediar) (MCG - 1972.02.23)
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Podia falar te do Jorge, que agora anda todo bem vestido - fato cinzento com colete e gravata - , do seu amigo Carlos .- que é moço de recados no Café Arcada e maça as pessoas com os seus préstimos (as gorjetas são a sua única remuneração). Ou do Pedro, que esteve muitos anos no Brasil, que é um tipo expansivo e bom palrador, mas que fala com sotaque brazuca para impressionar (o Jorge desmascarou o no café, com um dos seus comentários de miúdo que não está ainda dentro de certos mecanismos sociais) (...) (MCG - 1972.11.06)
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Ah! acabei por não ir ao cinema. À tarde o nosso amigo Jorge veio cravar-me dinheiro para o "Trinitá" (MCG - 1972.12 ?)
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O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( MCG - 1973.06.10)
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Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "Senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...) Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor. (1 ) (MCG - 1973.12.06)
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1 - Ao arrumar papelada, encontrei um texto que ele dactilografara na minha velha Olivetti Lettera 2000: a primeira parte é um conto, escrito com piada embora com muitos erros ortográficos. É demasiado longo para esta nota de rodapé. Na segunda parte escreveu: "1. - O senhore Vitor Nogeira 'e muito meu amigo e axo que ele tambem gosta de mim eu pelo menos gosto dele as coizas que eo gosto de fazera! gosto de escrever a maquina gosto de houvir discos gosto de ler livros 2. - (gosto muito dos meus pais foram eles que me quriaram;" Ainda hoje me comovo com este escrito, especialmente com a segunda parte.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Retratos (7) - Um génio genial

* Victor Nogueira
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Estirado no divã, olhos fechados, o Carlos [Nunes da Ponte] ouve as gravações [de órgão] que efectuou no sábado - algumas composições de sua autoria, outras de Bach. Está contente com a sua genialidade. (MCG - 1972.07.10 - ?) - Évora

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Retratos (6) - Dia de S.Porco

* Victor Nogueira
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Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram se cheios de forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e ao estorvo provocado. É dia de S.Porco, i.e, dia de mercado, em que os homens vêm à cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte, botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás. (MAF - 1971.10.09)
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Évora é uma terça-mercado numa praça.
numa praça em terça-mercado um café.
de um café em praça numa terça-mercado.
de agrários cinzentos..
como cepos sem vida. (POE - (1)
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Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café - enchem-se de alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas ! (NID - 1973 ?)
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1 - Do poema Natureza Morta, escrito em Évora

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Retratos (5) - Uma boa vida

* Victor Nogueira
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Ali duas velhotas discutem as vantagens de ser criada de servir: «ganham bem, vestem os vestidos da senhora, não gastam nada. Uma vida de fidalgas» .
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(MCG - 1974.12.10) - Évora

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Retratos (4) - A Belocas


* Victor Nogueira
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Perdi a semana passada uma amiga. Era um quadrado no "Diário de Luanda", uma dúzia de linhas e um nome:.
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- Maria Isabel Belo Serpa Pimentel -

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Não havia dúvida, era a Belocas, aquela miúda cheia de vida, duma franqueza generosa, dum sorriso riso sonoro que nos dispunha bem, a Belocas que eu e o Camilo tanto apreciávamos. Que ficou de telefonar-me quando passasse por estes dias em Luanda, a caminho de Moçambique, para onde a convidaram. Com 21 anos, a Belocas (como eu e o Camilo lhe chamávamos) morreu. No seu primeiro salto o pára-quedas não se abriu. Sinto me desolado. O meu estoicismo não me é suficiente. Dou por mim a pensar nisto tudo, no porquê e no para quê da nossa existência e de tudo o que nos rodeia. Porque corremos nós?! Estudo, e não estudo nem o que quero nem como quero. Morrerei, mas não sei quando nem como (o que de resto não me preocupa muitas vezes) Entretanto não serei eu. Estou emocionado porque quero e como a emoção - neste caso - não leva a parte alguma, tenho de querer não estar emocionado. Mas estou!
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É meia noite. No meu colo está aninhado o "Chá-Chá", um gatito preto cá de casa. Tudo é silêncio, salvo o ronronar do gato e o zumbir dum insecto encadeado pela luz da lâmpada, além dos carros que passam além na rua (é a hora do regresso do cinema). Amanhã entro na segunda semana de estágio de fim de curso, na Petrogal.
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(NID - 1971.08.22)

domingo, 14 de outubro de 2007

Retratos (3) - Évora e o Mota de Oliveira


* Victor Nogueira
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(...) Falei te dum poeta açoriano, admirador do Antero de Quental. É um jovem entusiasta, extremamente emotivo, com os nervos à flor da pele; é um catavento agitado por emoções e sentimentos, para quem Évora é contra indicada. Para ele tudo é extremamente belo e maravilhoso. Falei também da sua intervenção na ASSEMBLEIA de Dezembro, que sabe, mas não diz, que isto é uma "pileca velha, sarnenta e cheia de moscas." Pois o Carlos [Mota de Oliveira], que é um temperamental, não suporta o Rola [cónego Henrique Marques]. Perante uma intervenção daquele, o Rola começou a desviar a conversa e a falar na imaturidade impreparação dos estudantes para discutirem, pela falta de visão panorâmica da matéria - blá, blá, o que levou o Carlos a abandonar pura e simplesmente a aula. Mostrou me o rascunho da carta [que ia enviar à Direcção do ISESE] mas não consegui convencê lo a suprimir o final do primeiro período do sexto parágrafo [de A CONSCIÊNCIA]! Não sei o que lhe sucederá ! (1) (NSM - 1971.01.14)
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1 - Entretanto o Carlos abandonou o ISESE e nunca mais soube dele. Sei que tem livros de poesia publicados porque os tenho visto em livraria. (1998)
Foto por Victor Nogueira (Évora - ISESE)

sábado, 13 de outubro de 2007

Retratos (2) - O Cunha, alfarrabista em Luanda


* Victor Nogueira

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(...) Lembras-te do Cunha? Em Luanda era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme a quem os miúdos roubavam e provocavam. Cria em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor, dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro; falávamos de ópera e ele trauteava as árias, falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se o os livros em stock fossem libras. O homem que não conseguiu ser ele mesmo, condenado a vender a abominável literatura de cordel. "Escreva-me, não se esqueça deste pobre velho!""Havemos de ver-nos nas Ferias Grandes! " O meu postal ficou sem resposta. O Cunha morreu, só, abandonado, como um cão! (Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa). E nas tardes quentes e plúmbeas mais uma voz silenciou-se: os frigoríficos do Pólo Norte -Frimatic, o Rei dos Frigoríficos - substituem os livros que nunca foram libras! (1)

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1 - Escrito em Évora, em 1969.03.16 (Num repelão) O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa: "Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!" (NSF - 1968.08.20)
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Foto do post em memorias3
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Ao fundo à esquerda ficava a Cervejaria Polo Norte, na esquina, e à direita a loja dos Frimatic. No meio, no prédio mais baixo, ficava a loja do Cunha; à direita, a Igreja de N, Sra dos Remédios (Sé de Luanda), onde oficiava o Cónego Manuel das Neves, de que falei noutros posts, preso pela PIDE a seguir aos ataques do MPLA de 4 de fevereiro de 1961.

Foi o Padre Manuel das Neves quem me baptizou, crismou e deu a 1ª Comunhão. Gostava deste sacerdote com quem falava muitas vezes e que nunca vi como o sanguinário terrorista como a comunicação social de Luanda o passou a apresentar após o 4 de Feveriro de 1961.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Retratos (1) - O meu avô, sempre de preto vestido



* Victor Nogueira
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Eu e o avô Barroso somos muito amigos. Eu pensava que ele era uma pessoa muito sisuda mas afinal também é brincalhão e uma pessoa fala agradavelmente com ele. Ás vezes costumamos falar em francês. (NSF - 1963.01.28).
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O avô é uma pessoa de hábitos e de planos, pelo que qualquer imprevisto o desorienta. É verdade que eu tenho conseguido vencer os seus escrúpulos. Por exemplo, ainda não houve umas férias em que ambos estivéssemos de acordo quanto à minha estadia. Mas acabo sempre por ir quando pretendo e ficar sempre mais uns dias. A questão é saber falar com ele ou pô lo perante factos consumados. De resto eu tenho sempre o meu tio Zé do meu lado, pois quando lá não estou "esta casa parece um túmulo, ninguém fala", etc. De resto o tio Zé diz às vezes porque não fico lá, que já não teríamos questões como da outra vez.[1966] Que aquilo sucedia porque é meu amigo e queria que eu estudasse. Sabes, eu gosto dele, porque estou mais velho e encaro as coisas doutra maneira. (NSF - 1968.07.20)
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(...) São 16 horas e o meu avô já me chamou ali do lado para me pedir um favor, muito de mansinho: que me ajoelhe e beije os pés da imagem. Se o não fizesse seria um escândalo, que as pessoas reparam em tudo: "Então ele é um ateu ?!"
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(...) O compasso veio, as pessoas foram para a sala de entrada. (...) Alguns velhotes detêm se a falar com a sra.Elvira, criada do avô Barroso. Este está muito sorridente, apresenta a filha "que é professora em Luanda" e o neto. Não posso deixar de sorrir me e enternecer me com o ar jovial do avô, enquanto cumprimento "gravemente" as pessoas. (MCG - 1974.04.16)
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.O meu avô Luís comenta a TV. Francamente, supunha que ele era liberal, mas afinal é do tempo da velha senhora, profundamente conservador, contra o post-25 de Abril e adepto da ditadura (ou não tivesse sido legionário). (1) Já o meu avô Barroso defende posições muito mais progressistas, sendo só contra o comunismo ateu que não dá liberdade de religião. Mas diz ele que o importante é que o governo seja justo e que nem todos os regimes comunistas perseguem a religião. Acha muito mal que soltem os PIDES e todos esses reaccionários, que andam a trabalhar na sombra para derrubar a democracia, parecendo lhe injusto que tenham solto o Marcelo [Caetano], no Brasil a gozar dos rendimentos. Ah!Ah!Ah! o meu avô Barroso mais progressista do que eu pensava! Sim, que a gente não ganhava nada com as colónias, era só uma exploração. E que é capaz de eles em Angola e Moçambique não quererem fazer mal aos brancos. E assim o tempo modifica ou rectifica as imagens que temos das pessoas. (MCG - 1974.09.22)
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Meu avô António Barroso (...) filho de lavradores abastados de Barcelos. Casado jovem, guarda livros num banco, passando noites somando intermináveis colunas de cifras e o dinheiro que faltava para tantos filhos. Meu avô, quando jovem, tinha nas fotografias um ar austero e severo, sempre de preto viúvo. Meu avô, já idoso, um ar jovem e sereno, um sorriso moço e tímido, uma fala mansa. um gesto amigo. Viúvo de Francisca da Conceição, de Chaves, que não conheci, casou mais velha, falava francês e tocava piano, alegre e generosa, dizem-me. Minha avó trocou o convento pelo casamento, mas antes deixou os bens aos padres das Oficinas de S. José. Encontraram-se no Porto e muitos filhos tiveram que não conheci senão minha mãe, e meu tio Zé Barroso, grandiloquente e folgazão, curioso e letrado. Minhas tias Marias Almira e José, meu tio Joaquim - estes só conheço das recordações da minha mãe. Meus tios não casaram. Apenas meus pais em Cedofeita se encontraram e para Angola partiram. O meu avô António viveu sempre na Rua dos Bragas e mandou fazer uma casa no Mindelo, perto da praia e de Vila do Conde, com um quarto para a filha, quando o fosse visitar. A casa fechada e abandonada, porque morreu em tempo de Páscoa. Meu avô Barroso era católico ferrenho, apóstolo ingénuo, mas que depois de Abril aceitava os comunistas. (POE - 1985.11.13) (2)
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1 - Meu avô Zé Ferreira, nascido em Mora, filho de comerciante ribatejano, químico analista alegre, jovem, despreocupado, que em menino me levava ao cinema e ao café, e de quem recebia o Pim Pam Pum e o Cavaleiro Andante. Meu avô que eu adorava. Casado com a avó Alzira., gorda e doméstica, natural de Matosinhos; no seu colo me refugiava quando á janela o homem do saco aparecia, na Travessa da Carvalhosa, no Porto. Que morreu quando eu era menino, em Luanda, o meu pai chorando ao volante da carrinha. O meu avô viveu com os filhos em muitas terras, até em Angola, onde nasci. O meu avô Luís agnóstico, livre pensador e tolerante, que não aceita os bolcheviques. Do poema Elegia pela Minha Família Dispersa, escrito em Setúbal.
2 - Do poema Elegia pela Minha Família Dispersa, escrito em Setúbal, em 1985.11.13
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Photomatom - Porto (Palácio de Cristal) - 1963
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ver também
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« 7. - Engano muito propagandeado e mentiras, com algumas linhas sobre D. António Barroso, Bispo do Porto», in
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quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (34)



* Victor Nogueira


Setúbal, 1995. ... ... Voz do Operário é a última linha escrita num «bloco» que não chegou a livro, intitulado «Textos ao (es)correr da pena e do tempo». O tempo foi passando e ficou apenas o essencial, que os saborosos detalhes perderam-se na bruma dos tempos e da memória. O que restou foi o «Passa, Camarada», que podem ler
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Se quiser SABER algo mais sobre a instituição clique em A Voz do Operário e em A Voz do Operário, Lisboa - Portal da Voz
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Fotos da fachada exterior e da sala de espectáculos d'A Voz do Operário

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (33)

* Victor Nogueira

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Se me ficasse apenas pela aparência do que os meus olhos vêm, a neblina e o cinzento que envolvem a cidade prenunciariam um dia frio, de chuva miúdinha. Mas o suor goticular que permanece à flor da pele sem que se evapore indica que o resto do dia, para além de nublado, será quente e húmido. Uma boa chuvada seguramente que refrescaria o tempo e afastaria este pesado chumbo que me envolve, que em Luanda, na estação quente, prenunciaria grandes e violentas bátegas de água quando não relampejantes e ensurdecedoras trovoadas. Mas este é um país de brandos costumes, de pequenas tempestades, de meias águas e de meias tintas. E depois nem sequer há os quilómetros de areia de praias para mergulhar como na minha terra perdida. Como se não bastassem os ajuntamentos, as praias da costa da Arrábida estão na sua maioria impróprias para consumo devido ao elevado grau de poluição. De modo que ao fim do dia, após o emprego, resta apenas a água fresca do chuveiro.
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Já mudámos de edifício, vai para mês e meio. Agora trabalhamos no centro da cidade, mas as relações entre as pessoas alteraram-se radicalmente no enorme casarão de seis pisos e paredes frias onde se concentraram vários serviços municipais até então espalhados pela cidade. Distribuídos que estamos pelos vários andares com múltiplos corredores e gabinetes, maior é o isolamento pois menos vezes nos cruzamos uns com os outros, para além de se ter tornado menos natural assomarmos e permanecermos nos gabinetes uns dos outros. Fiquei num gabinete pequeno, com o meu colega geógrafo, e porque a sala é pequena e sem estiradores, foi possível torná-lo menos árido e mais acolhedor que os enormes salões onde despejaram engenheiros, arquitectos e desenhadores, perdidos no meio dum espação onde largaram o mobiliário de estilos e feitios díspares.
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E por deambulações, um fim de semana destes, no final de Abril, fui até à Madeira, à terra do Alberto João (Jardim), como lá é conhecido. Tirei algumas fotografias e comprei alguns postais; visitei a ilha quase toda, que em muitos sítios me fazia lembrar terras do continente: aqui as Serras do Gerês ou de Sintra, além a linha do Estoril, acolá a Serra da Arrábida ou os socalcos dos vinhedos do Rio Douro.
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Mas não gostaria de viver numa ilha, especialmente numa ilha tão alcantilada e sem uma única praia, que só existem na Ilha de Porto Santo, onde não fui. Novidade novidade para mim foi ter estado no interior árido da cratera dum vulcão extinto - o Curral das Freiras - ou ver o mar lá em baixo, a 500 metros, na berma duma estreita e sinuosa estrada ou passar com relativa rapidez da beira-mar ao cimo do monte, do calor ao frio relativo, serpenteando pelas estradas sinuosas onde nalguns sítios não cabem dois carros lado a lado. Mas o isolamento das várias povoações tem sido ultrapassado pela construção de túneis e viadutos, que encurtam as distâncias mas normalizam os usos e costumes. Vi poucas flores, salvo em Santana e nos jardins do Funchal. De resto a ilha é duma vegetação luxuriante nalgumas zonas e duma enorme aridez noutras.
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Quanto às povoações, nada de especial têm quanto ao estilo dos edifícios, que na maioria dos casos se confundem com os de qualquer dormitório de vivendas sem qualidade nos arredores duma qualquer grande cidade do continente. Santana, para turista ver, conserva alguns exemplares das primitivas casas, de alçado triangular como no Norte da Europa, com telhado de colmo e paredes de madeira. Também no centro do Funchal as casas fazem lembrar as do Norte de Portugal, o que indicia que os primeiros povoadores (e os seguintes) teriam vindo lá de cima. Á noite esta cidade também é bonita, com as luzes cintilando pela íngreme encosta acima.
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Mas nem tudo são belezas; há miséria e gente a pedir em muitas terras do interior e no Funchal os meninos pobres que habitam o alto da encosta descem à cidade para a prostituição e o roubo; aliás aqui há tempos foi exibido nos cinemas e na televisão um filme, que não vi, sobre a vida destas crianças, salvo erro denominado Mário.
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Setúbal, 94.06.15

Ao (es)correr da pena e do olhar (32)

* Victor Nogueira
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Pois é, lá se vai dentro em breve o meu privilégio de trabalhar a escassos metros de casa; o Presidente fez uma reunião com o pessoal do Departamento de Habitação e Urbanismo para comunicar que dentro de dois meses vamos mudar com armas mas sem bagagens para um edifício novo, com quatro ou cinco pisos, no centro da cidade, perto dos Paços do Concelho. Aqui em cima estamos distribuídos por dois pisos no que também esteve para ser um centro comercial, agora transformado em autêntico labirinto com portas, corredores, escadas e paredes envidraçadas por todo o lado. Uma autêntica ratoeira em caso de sinistro mas, como se costuma dizer, em casa de ferreiro espeto de pau. Pois é, sempre é melhor irmos para o Centro da cidade, não só porque há mais economias nas comunicações entre os serviços e nas deslocações dos munícipes, mas também porque há mais vida e movimento na Baixa.
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Quem encontro todos os dias é o meu velho Renault 5. O novo proprietário, que é mecânico, já lhe tirou as amolgadelas e a ferrugem e qualquer dia aquele chasso até parecerá um Rolls Royce.
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Ao lermos uma novela ou uma história imaginamos as cenas, a paisagem, os personagens, dando a estes uma voz, uma imagem física. Por isso às vezes a transposição para o cinema revela-se-nos uma desilusão. Quando leio o que a Maria do Mar me escreve(u) surge perante mim a sua imagem neste ou naquele momento da nossa vida, uma pessoa simples, encantadora, gentil e delicada.
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Setúbal, 94.02.23

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (31)

* Victor Nogueira
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Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sozinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal.
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De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda os vedantes metálicos para as janelas.
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A Maria do Mar já deve ter recebido as duas fotografias que lhe mandei, embora não me tenha dito qual a sua opinião acerca das mesmas e se escolheu alguma delas para o seu porta-retratos. Hoje enviei-lhe as que lhe tirei na sua bonita sala, embora tenham ficado escuras. Comprei umas molduras grandes para decorar as paredes com as ampliações das minhas melhores fotografias, mas depois quando as fui seleccionar não me agradou nenhuma delas. De resto cada vez gosto menos da minha casa, embora seja nela que passe muito tempo, quando não ando na rua ou por aí.
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Antigamente, aos fins-de-semana, ia até à Serra da Arrábida ou até ao morro de S. Filipe ou para a Estrada da Comenda, o carro debaixo da sombra duma árvore para ler o jornal e para ouvir música. Mas agora fico-me pelo descampado no cimo das escarpas de S. Nicolau, onde as árvores ainda não cresceram e para onde agora vão muitos carros, demasiados para o meu gosto. Aliás cada vez mais a cidade está sendo separada do rio, por causa do aumento do Porto de Setúbal, e cada vez mais nos arredores as casas substituem as árvores ou o arame farpado impede o acesso aos campos.
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E nas minhas longas e solitárias noites leio, vejo filmes ou estou agarrado ao computador, quando não ao telefone. Deito-me sempre muito tarde, entre as 2 e as 5, e depois o tempo para dormir é pouco, pois levanto-me entre as 8 e as 9. Vantagens de morar a escassos metros do local de trabalho e de ter horário flexível. Há dias em que ando bêbedo de sono, mas á noite é que faço algumas das coisas que me dão prazer (ler, escrever, conversar, ver cinema, aprender coisas novas), que normalmente não faço durante o dia, dividido que estou, muitas vezes sem prazer, entre a actividade sindical e o trabalho na Câmara.
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Aliás cada vez mais me custa ir para a Câmara, onde me dou bem com toda a gente. Mas de qualquer modo já nos conhecemos a todos uns aos outros: as conversas, as reacções e os tiques de cada um. Depois, no meio disto tudo, há os filho(a)s da mãe, que sorriem mas pela calada espetam o dente e o punhal afiados.
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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas, onde continuo a ir com a Arqª. Arminda ou com a Arqª. Nina e onde vai o pessoal da Secretaria. E isto para não falar das chefias, que já deixaram de se misturar com o maralhal.
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Nunca gostei de ser professor, mas era uma profissão com algumas vantagens: havia sempre caras novas (alunos e professores) e havia tempos livres para andar na rua, nas horas em que o resto da malta estava atrás dum balcão, sentado a uma secretária ou preso na oficina.
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Desde há pouco que comecei a sentir o frio a entrar-me nos ossos; olho pela janela e reparo que é já noite; defronte a mim o relógio diz-me que são quase 20 horas.
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Bem, vou fazer para ali uma mistela para comer. Depois acabarei de ver um filme policial que gravei esta madrugada. (Um outro, do Jerry Lewis, que não aprecio muito e me causa um certo constrangimento, ficou sem o final, devido ao incumprimento de horários pela televisão).
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Nas minhas idas a Lisboa, acabadas as reuniões, vou até ao cinema. Gosto de ir às sessões do fim de tarde. Duma das últimas vezes gostei muito da Idade da Inocência: um filme muito bonitinho, de Martin Scorcese, mas duma extrema violência, passado na alta sociedade nova iorquina da passagem do século. Sob o manto diáfano das boas maneiras e dos sorrisos, a extrema violência da hipocrisia e das convenções sociais, da escolha da segurança e do bem-estar em detrimento da loucura do amor e da paixão.
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Outro filme que vi foi M.Butterfly. A Madame Butterfly é uma ópera que canta os amores dum ocidental por uma japonesa, que se suicida quando aquele a abandona, comoventemente para o público ocidental. Com base nisso, o filme narra a paixão (verídica) dum diplomata francês pela intérprete de M.Butterfly no Teatro de Pequim. E o que parecia uma grande paixão, iniciada na China e prosseguida em Paris, anos mais tarde, não passaria duma sórdida história da paixão e degradação dum homem apaixonado por outro homem, ambos presos e condenados por espionagem.
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Claro que uma leitura linear pode levar-nos a perguntar como pode um diplomata desconhecer que na China os papéis femininos eram interpretados por homens (como aliás na Europa, nos tempos de Shakespeare ou de Gil Vicente) ou como pode um homem manter uma relação amorosa com uma mulher (afinal homem) que simula uma gravidez ( que implica a existência de relações sexuais ) sem que alguma vez durante anos o suspeite? (Aliás caso semelhante teria acontecido em Portugal com a história da generala). Mas é o próprio francês que nos dá a resposta, quando afirma que se apaixonou não por um homem, mas sim por uma mulher criada por um homem (e quem melhor que um homem pode saber o que um homem pretende duma mulher, perguntar-se-á? Ou, na mesma ordem de ideias quem melhor que uma mulher para saber o que uma mulher espera de um homem? ). E no fim é o francês que se suicida, num acto teatral, travestido de Madame Buterfly, enquanto o espião chinês é deportado para a China).
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Afinal todo o amor (ou a paixão?) não será senão uma encenação, uma ilusão dos sentidos, uma elaboração mental, uma construção ( social ? ) que em certa medida a sabedoria popular expressa em ditos do género O amor é cego ou Quem o feio ama, bonito lhe parece ?! O que me levaria ao programa do Júlio Machado Vaz, Sexualidades, que já não via há muito tempo, ontem dedicado ao namoro e ao casamento ou ajuntamento, ao (des)conhecimento das pessoas, aos papeis masculinos e femininos, com filhos, filhas e algumas mães e nenhum pai. Por sinal todas as mães presentes (nenhuma divorciada ou solteira) com ausentes mas compreensivos maridos. É impressionante como a maioria dos homens e das mulheres (esposas e mães incluídas) se educam mutuamente, não para a liberdade e o respeito mútuo, não para a entre-ajuda e a solidariedade, mas para a negação disto tudo. Aqueles seriam pais e filhos diferentes da maioria, apesar de tudo. É difícil ser diferente, querer construir uma relação à margem das convenções sociais, que não libertam mas aprisionam.
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Setúbal, 1994.02.20

domingo, 7 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (30)

* Victor Nogueira
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E pronto, o 1º de Janeiro de 1994 é quase passado e acabaram as transcrições de textos que jaziam aqui no computador. Olho pela janela e o céu já escureceu. Ouço o leve ronronar do ventilador do computador e o ruído das motorizadas lá em baixo na avenida. Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. Vou fazer o jantar e depois sentar-me-ei frente à televisão para ver o filme "Aconteceu no Oeste", para além do último episódio da série policial britânica "Último Suspeito". Entretanto serão altas horas da madrugada.
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Setúbal, 1994.01.01
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Está um domingo nem chuvoso, nem soalheiro. Está uma tarde gélida: o frio entra pelos interstícios das janelas como lâmina cortante e tenho o corpo gelado, apesar dos agasalhos. Os meus tios foram sair ver uma exposição no Centro Cultural de Belém, eu resolvi ficar em casa. Se tivesse o meu carro metia-me com as rodas á estrada. Assim fico por aqui até 2ª feira; nos dias seguintes irei ao fisiatra e aos restantes especialistas por causa das minhas maleitas. Esperemos que a Fátima {secretária da Divisão de Planeamento Urbanístico e minha amiga, que entretanto faleceu inesperadamente] me tenha marcado as consultas todas. Entretanto retornarei à chateza do emprego e duma vida que me vai escorrendo sem entusiasmo.
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Sinto-me desanimado e cansado das minhas ilusões, dos sentimentos por mim supostos em outrem. Dói-me voltar sempre ao mesmo, sem esperança nem futuro. Mas na vida não há caminho senão aquele que nós, caminhantes, abrimos ao caminhar. E qual é o caminho que a minha amizade pelos outros abre? Qual é o caminho que os outros me abrem ?
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Paço de Arcos, 1994.02.06
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Está uma tarde fria e cinzenta. Almoçamos em casa do Zé e da Ana. O Zé e o sr. Caldeira cantaram músicas do Alentejo; o pai da Ana tem uma voz muito bonita. O Rui também abrilhantou o almoço, com a sua viola, que já toca bem. Com os seus truques de magia e cartas, bem poderia começar a pensar em animar as festas de bairro!
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A Susana foi dar uma volta; ficou de vir às seis para irmos ao Jumbo comprar a prenda para o César, o filho da Ana e do Zé (de Pias), que hoje fez 3 anos. Quanto ao Rui, comigo, é mais caseiro e agora anda para ali aos saltos com o Bruno, desalojados que foram do computador, e em animada conversa com a Catia e a Aida, as filhas mais velhas da Ana e dum outro Zé (da Amareleja), com quem vivem.
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Setúbal, 94.02.06

sábado, 6 de outubro de 2007

Tudo bem ?


Ao (es)correr da pena e do olhar (29)

* Victor Nogueira
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Está uma tarde cheia de sol, embora fria, que o tempo não é de calores. Alguém faz obras em casa; suponho que sejam do vizinho de baixo as marteladas que ressoam enquanto toda a tarde se tem ouvido o ruído do tractor removendo terra e pedras lá em baixo, concluídos que estão os edifícios até agora em construção aqui em frente.
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Já comprei um carro novo, um Ford Fiesta, embora só mo entreguem para a semana. Preferia que fosse assim como branco amarelado, para se notar menos o pó, mas não havia e acabei por ficar com um cinzento-azulado metalizado, uma côr também bonita. Entretanto tenho que desfazer-me do meu Renault 5, velho e cansado companheiro de viagens em Portugal, do Algarve até ao Minho. O dinheiro que receberei com a sua venda (25 a 50 contos) não me dará nem para o tabaco (que aliás não fumo senão em baforada dos outros!), mas transferindo os seguros para o novo sempre faço uma poupança anual de 25 contos. Para além disso precisa dum conserto de 30 e tal contos. Mas, como não encontro a Maria do Mar e como anda ausente de mim e não me falou mais no assunto não será nele que aprenderá a conduzir, pois para outro fim não me interessaria ficar com o Renault.
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Comecei já a fisioterapia e sinto-me melhor da espinhela. (...)
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Em Dezembro irei gozar o resto das férias. Ainda ficarei com sete dias de folga por trabalho extraordinário não remunerado, que espero aproveitar para ir ao Porto em Dezembro.
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Recebi uma proposta para ir trabalhar para Lisboa, pelo menos durante um ano, com possibilidade de não utilizar o meu carro em serviço e nas deslocações para casa. Mas ainda não voltei a abordar a questão, em parte porque não me apetece fazer diáriamente a viagem entre Setúbal e Lisboa, em parte porque não me apetece ficar em casa dos meus tios, em parte porque prefiro saber primeiro os resultados eleitorais. (...)
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Numa rua da Baixa reencontrei Joana Com Sabor a Cravo e Canela, de quem não sabia há muito e fiquei contente e comovido por voltar a vê-la.
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Setúbal, 1993.11.20
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Hoje, que escrevo á Maria do Mar, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que ela me lê, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias á nossa frente.
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(...) Gosto muito dela e ás vezes parece-me que sem ela a vida não tem sentido. (...) Mas ela constrói uma fortaleza, perante mim e á sua volta, cheia de incerteza, nevoeiro e "sentinelas". Mas eu não quero conquistar fortalezas nem convencer sentinelas. Queria apenas que fôssemos um campo aberto onde o mar e a brisa corressem livremente. Queria apenas e simplesmente estar com ela, sem armaduras e sem este cansaço e sem esta fartura duma vida cinzenta e sem horizontes.(...)
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Procuro não ter pena de ninguém. De mim rio-me com frequência (ainda não perdi a capacidade de fazer humor com as minhas desgraças e desgostos e talvez seja por isso que ainda me vou mantendo à tona). Dos outros não me rio. Procuro ajudá-los, ser-lhes prestável, dar-lhes a minha solidariedade. Sobretudo com os actos e menos com palavras, por muito belas e grandiloquentes que sejam.
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Setúbal, 1994.01.01

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (28)

* Victor Nogueira
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Desta vez é que fui mesmo ao tapete, usando a gíria do pugilismo. Pois é, desde 5ª feira passada (23 Setembro) que mal me aguento nas canetas, pelo que na 6ª voltei ao médico, que me queria passar um atestado para ficar em casa, decisão que adiei para 2ª feira (27 Setembro). Está um fim de semana bonito, soalheiro, grande parte do qual passado a dormitar, eu que normalmente não consigo dormir de dia e que me deito já quando a noite vai alta. Porque me sentia bastante embaixo ainda telefonei à minha vizinha Estrela para me comprar pão, fruta e os jornais, mas como ela já saíra tive de meter-me no carro para ir ao Jumbo abastecer-me. Mas hoje, embora zonzo, lá saí novamente á hora de almoço para comprar o jornal.
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Isto dos médicos é uma ova, porque amigos amigos, negócios á parte. Claro que a médica deveria ter-me auscultado quando a consultei no regresso de férias, porque lhe dissera que tinha estado com problemas na garganta durante férias, que tentara resolver com auto-medicamentação. Como o não fez, uma semana depois estava lá (re)caído, descobrindo então a lástima em que eu tinha a garganta e os brônquios. No entanto, na semana seguinte tive de lá voltar, á consulta não dela mas do marido, porque não estive para passar o fim de semana com violentos ataques de tosse. De modo que o médico decidiu-se pelos antibióticos e uma radiografia. Tudo bem, só que cada consulta é paga, pelo que um tipo que já não tem amor aos médicos (e ás médicas) não fica muito encantado com as recaídas ou tratamentos deficientes, mesmo que os Serviços Sociais do Pessoal da Câmara paguem 80 % do valor de qualquer consulta e a totalidade dos medicamentos.
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Disse um dia destes que relera com emoção um poeta que é o Eugénio de Andrade. Dou comigo a relê-lo com uma certa tristeza. Porque afinal muitos dos poemas do Eugénio de Andrade expressam não a plenitude da alegria do amor alcançado mas a nostalgia do que se perdeu ou não alcançou.
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A propósito, noutra ocasião, por lapso, escrevi "Prefiro o amor á amizade ... " quando o que deveria ter saído seria "Prefiro a amizade ao amor". Mas hoje não me apetece dissertar sobre este tema.
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Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril, (quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina), e as primeiras semanas de 1986 [após o meu divórcio], (quando reatei relações com velhos amigos e "encontrei" a Maria do Mar). Mas não se concretizaram as promessas que eles continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que me cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985.
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Notícias do Bloqueio II
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Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se á mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o significado do
que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos dedos
indiferente
medíocre
submissa.
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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. Liguei o televisor aqui do escritório, que transmite uma telenovela, para dar notícia do começo de mais um episódio da 6ª série de O Polvo, sobre a Mafia Italiana.
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Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu á tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo.
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1.
Com os meu dedos
sigo lentamente os teus lábios
Uma leve brisa agita o teu olhar
e não sei bem se é um pássaro
ou uma flor
o sorriso que nasce no teu rosto.
Será noite
ou uma criança a navegar?
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Setúbal, 1993.09.26
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2.
Nas minhas mãos
o dia escurece
e não ouço nelas
o calor da tua voz a cantar.
Uma gota cai lentamente no horizonte
E outra
E outra
E mais outra ...
E as minhas palavras são
um novelo em busca do mar!
O teu rosto,
o teu rosto é uma linha a navegar
onde loucas gaivotas
querem mergulhar.
Quem as recolherá
como um cristal a brilhar?
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Setúbal, 1993.09.26
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Uma nova semana está terminada, com um domingo (3 Outubro) soalheiro e bom para passear com uma doce companhia
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Neste fim de semana a Susana não quis sair, a não ser para ir ás compras comigo, e colou-se em frente ao televisor ou a ouvir música, para além de se ter encarregado dos almoços e jantares e de aspirar a casa. O Rui pespegou-se frente ao computador a jogar com o Bruno, um dos filhos da vizinha Estrela, e desta vez não houve ensaios de viola porque a não trouxe. Outras vezes fazem um estendal no chão com carros, canhões e soldados simulando grandes, discutidas e barulhentas batalhas terrestres. Eu, como sempre, saí para comprar os jornais e víveres no Jumbo; vou lá por causa do pão e depois acabo por comprar o resto, sem ir á cooperativa. Comprei um CD duplo dos Beatles, o chamado álbum Vermelho. De modo que passei o fim de semana em casa, salvo no sábado á tarde quando fui até á do João Neves.
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O João Neves é geógrafo e está a substituir a Isabel e a Maria, que se foram embora da Câmara, onde estavam a recibo verde. Com ele faço agora equipa para prosseguir o levantamento, caracterização e programação do equipamento colectivo. Agora andamos ás voltas com o equipamento desportivo, ao qual se seguirá a rede escolar. De modo que saímos de manhã com o R4 do Departamento a percorrer o município, localizando em carta e preenchendo um inquérito, o que me agrada mais do que passar o dia encafuado num gabinete sempre com a mesma paisagem a as mesmas pessoas. E como não levamos motorista, sou eu que vou a conduzir nas calmas, o que me agrada. Quando ando com o meu carro ando sempre na esgalha, o que não sucede com o carro do serviço (ou do sindicato).
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Com isto tudo atrasa-se o meu trabalho sindical, o que me preocupa pois a proposta do Stal referente á revisão do sistema retributivo dos técnicos superiores não introduz alterações relativamente aos vencimentos dos docs, apesar das propostas feitas em devido tempo pelo grupo de trabalho de que falei. Tenho três semanas até Novembro, quando se realizará o Congresso do Stal, para tentar dar a volta á situação, pois a maioria dos sindicalistas e dos trabalhadores entendem que nós, técnicos, já ganhamos o suficiente, quando não demasiado. De modo que se não conseguir dar a volta lá terei de partir a louça no referido Congresso.
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Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram á porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça.
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Quem me bate á porta todos os dias é a Maria, que anda com o filho na esteira. O marido dela é operário, um homem do campo como ela, mas que não se habitua á cidade nem aos galinheiros que são os prédios em que vivemos. Pelo que de vez em quando está doente (e se não trabalha não ganha) ou são os empreiteiros que não pagam aos operários. Para ter emprego e ordenado certos vai para Lisboa todos os dias, saindo de madrugada e voltando á noite.(...) Agora ela anda entusiasmada com um curso de formação profissional de cozinheira, durante seis meses, a vinte quilómetros de Setúbal. (...) Mas ás vezes sou desabrido com o irrealismo da Maria (...). E depois irrita-me a admiração que tem por mim e que apregoa por aí. Um dia destes perguntei-lhe se me não via defeitos. Que não, que só me encontrava virtudes. De modo que lhe respondi que parecia a minha mãe, que só me vê qualidades, com a diferença de que eu é que sou uma espécie de pai e mãe dela.
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De qualquer modo agora tenho com frequência companhia ao almoço. Com efeito o Rui anda com uma paisite aguda, pelo que vem até aqui frequentemente para almoçar ou quando não tem aulas, pois a Escola da Belavista fica a dois passos. Normalmente traz um colega, nem sempre o mesmo, para almoçar também ou para jogarem no computador. E neste fim de semana resolveu ficar ... até 3ª feira (5 Outubro), embora a Susana tivesse ido embora hoje. De vez em quando chega-se inesperadamente a mim para beijar-me ou abraçar-me e retribuir-lhe. A Susana é que de vez em quando tem destes ataques de ternurite, mas vindos do Rui é novidade. Aqui é sempre o mais novo, enquanto que na casa da mãe passou a ser o do meio. Aliás o Jorge é um miúdo precoce, como foi a Susana, e o Rui ressente-se das habilidades comentadas dos irmãos das extremas. Quando está sózinho comigo é fácil de aturar, mas quando está com a irmã dá-lhe a veneta e aparecem as fitas para ser o centro das atenções.

O Rui agora passa a vida a experimentar penteados, parecendo-me que se fixou na risca ao meio com os cabelos para os lados, como se usava nos anos 40. Um dia destes rapou o bigode e depois comentava para a irmã que já o sentia crescer quando passava a língua pelo lábio superior!
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Não cheguei a meter atestado médico. Já efectuei os exames médicos excepto um para o qual andei a fazer dieta durante três dias. Mas depois, no dia do exame, não fui capaz de fazer a preparação final pelo que teve de ser adiado. De modo que o mais certo é morrer da doença, se for caso disso. A constipação parece estar controlada, embora me doa a garganta, tenha a voz enrouquecida e por vezes violentos ataques de tosse, especialmente quando arrefece, se falo mais alto ou durante muito tempo. O que me irrita é que na maior parte dos casos os exames nada acusam, de modo que quando não é uma virose (está na moda) é do stress e das contrariedades. Assim lá vou cantando, rindo, tossindo e ardendo por dentro.
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Setúbal, 1993.09.25/26

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (27)

* Victor Nogueira

Amanhã vou reiniciar a minha aprendizagem com as folhas de cálculo (matemático), interrompida há semanas e recomeçada hoje com umas breves lições do Luís, o informático do STAL. Entre as minhas actividades e responsabilidades extra-laborais está a coordenação e participação num grupo de trabalho de quadros técnicos da Administração Local. Ora, antes de partir para férias, uma colega nossa ficou de trabalhar uns dados, para permitir a sequência do nosso trabalho relativo à reestruturação de carreiras e revisão do sistema retributivo. Só que já lá vão umas seis semanas sem que ela tenha feito qualquer coisa, porque anda deprimida. De modo que tenho de ser eu a tratar do assunto, já que não posso permitir que as minhas depressões me façam andar pelos cantos durante muito tempo.
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Entretanto hoje resolvi fazer o que foi o terceiro bolo da minha vida, desta feita um bolo mármore. Das vezes anteriores foi pão-de-ló. O bolo come-se, não ficou muito mal. De qualquer modo só poderei lavar a forma depois dele acabar, pois ficou agarrado ás paredes da dita cuja, apesar de untada com margarina (acho que faltou passar as paredes com farinha). Para além disso a parte de cima não ficou nivelada, antes parecia o mar agitado em dia de vento, aos altos e baixos. Pois é, preciso é não perder a calma!
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A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ás mousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.
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O fim de semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sózinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.
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Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!
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Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ...
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1993.09.20

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (26)

* Victor Nogueira
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Afinal ontem, 5ª feira, acabei por não ir à reunião sindical em Lisboa; o tempo estava chuvoso e mau para os meus inflamados gorgomilhos. E depois, perante a crónica indisponibilidade dum dos carros do sindicato, decidi não levar o meu velho R5. Coitado do senhor Rui, o electricista-auto, que foi trabalhar na manhã do feriado municipal, contra a minha opinião, para mo entregar a tempo, para eu não faltar à dita reunião.
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Mas hoje é que choveu mesmo, aumentando a minha rouquidão. Que linda despedida o Verão nos tem dado nesta arrancada final para o Outono! Ali a avenida Bento Jesus Caraça parecia um rio caudaloso e lamacento, com água pelo passeio, devido aos boeiros entupidos. Felizmente que me precavera previamente com as botas pelo que não precisei de andar com bote!
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Aproveitei a pasmaceira do serviço para terminar a organização dos negativos fotográficos e a relação das cópias a efectuar. Para além disso continuei a ler o manual de instruções e a praticar numa máquina de dactilografia eléctrica, que ainda não domino completamente. É mais complicada do que a que eu tinha no serviço e que desapareceu misteriosamente do meu armário e do edifício no verão do ano passado. Um dia destes quis escrever na da Fátima, mas apesar das breves explicações dela e do Carapeto, não dei conta do recado, pois não é á primeira que se dominam as funções todas, pelo que desisti e limitei-me a enviar á Maria do Mar um postal com vista para o Estuário do Sado e Península de Tróia.
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O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais. Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.
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O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura!
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Ontem, que já é anteontem, a Maria do Mar falou sobre a felicidade em contraponto a uma pretensa atitude de infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do modo que eu preferiria. Diferente da infelicidade é o desencanto pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos de alegria e serenidade. Alguns deles com ela, apesar de tudo. E talvez parvamente e sem razão eu persiga nela a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível ter sido (ser) feliz com ela, como amigo ou como amador e ser amado. Mas isto só teria resposta se outra fosse a nossa relação. A isso, só a convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.
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Apesar de tudo acredito que é possível as pessoas serem felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os homens e as mulheres não foram feitos para estarem sózinhos ou viverem solitáriamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la.
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.Todos temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo. Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou levantamos á nossa volta.
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Quando estudante de Economia em Lisboa, tinha então vinte anos, frequentei um curso intensivo de inglês. A professora, uma jovem inglesa, a Maureen Baltazar, era alegre, encantadora e todos nós gostávamos muito dela. Mas entretanto ela resolveu regressar a Inglaterra, já não me lembro se por se ter entretanto separado do marido português. E o surpreendente para mim era o desgosto e a ideia expressa nas palavras duma das empregadas da escola pelo facto da Maureen abalar, creio que definitivamente, dizendo que mais valia não a ter conhecido porque assim não teria o desgosto de perdê-la. E surpreendia-me esta atitude, pelo que então lhe contrapuz que o que era importante era termos conhecido e convivido com a Maureen, porque a recordaríamos sempre com alegria e ao tempo em que tínhamos estado com ela, porque era um tempo que tinha valido a pena ter sido vivido!
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Setúbal, 1993.09.16/19

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Intervalo


* Victor Nogueira
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Admiro alguns blogs com post curtos, bem humorados, que falam das pessoas e do seu dia a dia com certa graça e encanto. Fico horrorizado com os meus diários de pré-adolescente, pela seca objectividade e ausência de humor, poesia ou pensamentos profundos. Aliás, «pensamentos» é o que neles não encontro.
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Ao reler cartas que recuperei da infância e da adolescência, sinto-me menos desgostoso, embora nelas impere a seca objectividade e a falta de «poesia» ou de «encantamento». Essas surgiram muito mais tarde.
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Não me apetece escrever e por isso o Kant_O Ximpi tornou-se um «cemitério» de recortes de jornais muito acedido, mas sobretudo em pesquisas na net feitas por outrem. E quando por vezes nele comento, é com ar sério. Um certo humor fica para Ao Sabor do Olhar, em escritas a duas mãos.
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Não me apetece fazer o que quer que seja e os blogs são um meio de manter-me à tona, como outrora o humor ou a piada fina, que vou perdendo.
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Na última consulta fui diplomático com a psiquiatra e disse-lhe a sorrir algumas verdades. Ela afinou e fiquei com algumas atravessadas mas os meus amigos dizem que sou pouco humilde e por vezes arrogante. E que ela tb não é estúpida e por isso «amuou» e que sou eu que preciso dela para comprovar que estou com uma depressão do tamanho do universo.
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Eu sei que escrevo muito, demasiado para quem anda a saltar de blog em blog, e que não faço parte de qualquer grupo, especialmente dos aduladores. Sei o que vale o que produzo e faço e sei o que vale o que os outros produzem e fazem.
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Como estão vendo, essas linhas aí atrás fazem sono.
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Falar do dia a dia? Não lhe encontro piada. Estou de baixa vai para um ano e agora ou reforma, ou regresso à chafarica até fazer 70 primaveras. Mas que p**** que nunca votei nesta tropa fandanga onde quase todos votam. Deito-me tarde e levanto-me cedo mas ando cada vez mais deprimido. Estou farto da baixa médica mas não tenho gosto em voltar à chafarica.
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Portanto, anteontem deitei-me já de madrugada e levantei-me cedo. Por causa dos blogs, que me estão a aborrecer, tal como as leituras. Continuo a escrever sem piada.
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Ao sair ao fim do dia para ir comprar os jornais dei pela falta do Fiesta. Pronto, lá mo roubaram, mas que chatice. Felizmente encontrei a vizinha Anita e comentei que desaparecera o carro. Ela disse-me que ao fim do dia anterior me vira vir pelo jardim a ler o jornal. Antes de ir participar o roubo à esquadra aqui perto, resolvi ir ver à tabacaria se lá não o deixara estacionado na véspera, pois talvez o tivesse levado porque ameaçava chuva e não me apetecia um pingado. Afinal lá estava o carro. Não mo tinham roubado.
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A hematologista diz que estou mal porque arrrumo o açúcar no micro-ondas, arrumo os congelados no armário, as batatas no congelador ou o café para aquecer no frigorífico. Acham piada? Eu não.
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O Rui está na Madeira, oferta da empresa aos vendedores. Como ele há dois meses que nada vende, nem fez uma única cadeira do curso que anda a tirar no politécnico, não sei se não será o «bolo» antes dos patins, estilo última refeição do condenado à morte! Vocês acham piada? Eu não. Telefonei-lhe para a Madeira e ele disse que não gostara de andar de avião pois gosta dos pés assentes na terra, o que não sei como consegue porque anda sempre com a cabeça na lua. Estava a mentalizar-se que para regressar ontem. Ele concorda comigo, que sim, que morre muito mais gente na rua ou em desastres de carro, mas que não torna a pôr os pés num avião. E eu que adoro andar de avião!
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Isto continua uma sensaboria. Hoje só recebi a visita da Belisa embora tenha andado a comentar pelos blogs amigos ou assim assim. Para a maioria devo ter um karma negativo, pois passam por cima dos meus comentários.
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Pus o Kant_O quase em dia, tratei de emitir os recibos do condomínio mas continuo com a contabiliadade por terminar e está quase ad fazer dois anos por causa da merda do empreiteiro que a Companhia de Seguros - Alliantz, fixem - que aldrabou as obras. Portanto, há dois anos que vivo num acampamento com metade dos livros e as loiças armazenadas noutro local.
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Isto tem alguma piada? Não. Também podia falar da psiquiatra, que foi aos arames com a minha consulta. Os meus amigos dizem que devo ser mais «humilde» porque preciso dela, isto é, que diga que estou choné para ver se saio da chafarica aposentado e sem penalizações na reforma. Sim, que penalizações nesta altura significa que ficaria com uma reforma igual a metade do que ganho, Acho que me estou a repetir, mas não me apetece confirmar.
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Como vêm, isto não tem qualquer piada. Claro que podia fazer piada, como sempre tenho feito ao longo destes vinte anos, mas a fonte secou.
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Pronto, não vos aborreço mais, o texto é pequeno mas o interesse nenhum.
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Até que nos encontremos.
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2007.10.01 - o2h53 m - Setúbal