sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (28)

* Victor Nogueira
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Desta vez é que fui mesmo ao tapete, usando a gíria do pugilismo. Pois é, desde 5ª feira passada (23 Setembro) que mal me aguento nas canetas, pelo que na 6ª voltei ao médico, que me queria passar um atestado para ficar em casa, decisão que adiei para 2ª feira (27 Setembro). Está um fim de semana bonito, soalheiro, grande parte do qual passado a dormitar, eu que normalmente não consigo dormir de dia e que me deito já quando a noite vai alta. Porque me sentia bastante embaixo ainda telefonei à minha vizinha Estrela para me comprar pão, fruta e os jornais, mas como ela já saíra tive de meter-me no carro para ir ao Jumbo abastecer-me. Mas hoje, embora zonzo, lá saí novamente á hora de almoço para comprar o jornal.
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Isto dos médicos é uma ova, porque amigos amigos, negócios á parte. Claro que a médica deveria ter-me auscultado quando a consultei no regresso de férias, porque lhe dissera que tinha estado com problemas na garganta durante férias, que tentara resolver com auto-medicamentação. Como o não fez, uma semana depois estava lá (re)caído, descobrindo então a lástima em que eu tinha a garganta e os brônquios. No entanto, na semana seguinte tive de lá voltar, á consulta não dela mas do marido, porque não estive para passar o fim de semana com violentos ataques de tosse. De modo que o médico decidiu-se pelos antibióticos e uma radiografia. Tudo bem, só que cada consulta é paga, pelo que um tipo que já não tem amor aos médicos (e ás médicas) não fica muito encantado com as recaídas ou tratamentos deficientes, mesmo que os Serviços Sociais do Pessoal da Câmara paguem 80 % do valor de qualquer consulta e a totalidade dos medicamentos.
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Disse um dia destes que relera com emoção um poeta que é o Eugénio de Andrade. Dou comigo a relê-lo com uma certa tristeza. Porque afinal muitos dos poemas do Eugénio de Andrade expressam não a plenitude da alegria do amor alcançado mas a nostalgia do que se perdeu ou não alcançou.
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A propósito, noutra ocasião, por lapso, escrevi "Prefiro o amor á amizade ... " quando o que deveria ter saído seria "Prefiro a amizade ao amor". Mas hoje não me apetece dissertar sobre este tema.
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Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril, (quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina), e as primeiras semanas de 1986 [após o meu divórcio], (quando reatei relações com velhos amigos e "encontrei" a Maria do Mar). Mas não se concretizaram as promessas que eles continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que me cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985.
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Notícias do Bloqueio II
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Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se á mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o significado do
que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos dedos
indiferente
medíocre
submissa.
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O domingo está passado. Para além da janela envidraçada, o negrume da noite pontilhada de luzeiros e reflectindo as estantes cheias de livros. Liguei o televisor aqui do escritório, que transmite uma telenovela, para dar notícia do começo de mais um episódio da 6ª série de O Polvo, sobre a Mafia Italiana.
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Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu á tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo.
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1.
Com os meu dedos
sigo lentamente os teus lábios
Uma leve brisa agita o teu olhar
e não sei bem se é um pássaro
ou uma flor
o sorriso que nasce no teu rosto.
Será noite
ou uma criança a navegar?
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Setúbal, 1993.09.26
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2.
Nas minhas mãos
o dia escurece
e não ouço nelas
o calor da tua voz a cantar.
Uma gota cai lentamente no horizonte
E outra
E outra
E mais outra ...
E as minhas palavras são
um novelo em busca do mar!
O teu rosto,
o teu rosto é uma linha a navegar
onde loucas gaivotas
querem mergulhar.
Quem as recolherá
como um cristal a brilhar?
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Setúbal, 1993.09.26
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Uma nova semana está terminada, com um domingo (3 Outubro) soalheiro e bom para passear com uma doce companhia
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Neste fim de semana a Susana não quis sair, a não ser para ir ás compras comigo, e colou-se em frente ao televisor ou a ouvir música, para além de se ter encarregado dos almoços e jantares e de aspirar a casa. O Rui pespegou-se frente ao computador a jogar com o Bruno, um dos filhos da vizinha Estrela, e desta vez não houve ensaios de viola porque a não trouxe. Outras vezes fazem um estendal no chão com carros, canhões e soldados simulando grandes, discutidas e barulhentas batalhas terrestres. Eu, como sempre, saí para comprar os jornais e víveres no Jumbo; vou lá por causa do pão e depois acabo por comprar o resto, sem ir á cooperativa. Comprei um CD duplo dos Beatles, o chamado álbum Vermelho. De modo que passei o fim de semana em casa, salvo no sábado á tarde quando fui até á do João Neves.
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O João Neves é geógrafo e está a substituir a Isabel e a Maria, que se foram embora da Câmara, onde estavam a recibo verde. Com ele faço agora equipa para prosseguir o levantamento, caracterização e programação do equipamento colectivo. Agora andamos ás voltas com o equipamento desportivo, ao qual se seguirá a rede escolar. De modo que saímos de manhã com o R4 do Departamento a percorrer o município, localizando em carta e preenchendo um inquérito, o que me agrada mais do que passar o dia encafuado num gabinete sempre com a mesma paisagem a as mesmas pessoas. E como não levamos motorista, sou eu que vou a conduzir nas calmas, o que me agrada. Quando ando com o meu carro ando sempre na esgalha, o que não sucede com o carro do serviço (ou do sindicato).
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Com isto tudo atrasa-se o meu trabalho sindical, o que me preocupa pois a proposta do Stal referente á revisão do sistema retributivo dos técnicos superiores não introduz alterações relativamente aos vencimentos dos docs, apesar das propostas feitas em devido tempo pelo grupo de trabalho de que falei. Tenho três semanas até Novembro, quando se realizará o Congresso do Stal, para tentar dar a volta á situação, pois a maioria dos sindicalistas e dos trabalhadores entendem que nós, técnicos, já ganhamos o suficiente, quando não demasiado. De modo que se não conseguir dar a volta lá terei de partir a louça no referido Congresso.
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Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram á porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça.
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Quem me bate á porta todos os dias é a Maria, que anda com o filho na esteira. O marido dela é operário, um homem do campo como ela, mas que não se habitua á cidade nem aos galinheiros que são os prédios em que vivemos. Pelo que de vez em quando está doente (e se não trabalha não ganha) ou são os empreiteiros que não pagam aos operários. Para ter emprego e ordenado certos vai para Lisboa todos os dias, saindo de madrugada e voltando á noite.(...) Agora ela anda entusiasmada com um curso de formação profissional de cozinheira, durante seis meses, a vinte quilómetros de Setúbal. (...) Mas ás vezes sou desabrido com o irrealismo da Maria (...). E depois irrita-me a admiração que tem por mim e que apregoa por aí. Um dia destes perguntei-lhe se me não via defeitos. Que não, que só me encontrava virtudes. De modo que lhe respondi que parecia a minha mãe, que só me vê qualidades, com a diferença de que eu é que sou uma espécie de pai e mãe dela.
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De qualquer modo agora tenho com frequência companhia ao almoço. Com efeito o Rui anda com uma paisite aguda, pelo que vem até aqui frequentemente para almoçar ou quando não tem aulas, pois a Escola da Belavista fica a dois passos. Normalmente traz um colega, nem sempre o mesmo, para almoçar também ou para jogarem no computador. E neste fim de semana resolveu ficar ... até 3ª feira (5 Outubro), embora a Susana tivesse ido embora hoje. De vez em quando chega-se inesperadamente a mim para beijar-me ou abraçar-me e retribuir-lhe. A Susana é que de vez em quando tem destes ataques de ternurite, mas vindos do Rui é novidade. Aqui é sempre o mais novo, enquanto que na casa da mãe passou a ser o do meio. Aliás o Jorge é um miúdo precoce, como foi a Susana, e o Rui ressente-se das habilidades comentadas dos irmãos das extremas. Quando está sózinho comigo é fácil de aturar, mas quando está com a irmã dá-lhe a veneta e aparecem as fitas para ser o centro das atenções.

O Rui agora passa a vida a experimentar penteados, parecendo-me que se fixou na risca ao meio com os cabelos para os lados, como se usava nos anos 40. Um dia destes rapou o bigode e depois comentava para a irmã que já o sentia crescer quando passava a língua pelo lábio superior!
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Não cheguei a meter atestado médico. Já efectuei os exames médicos excepto um para o qual andei a fazer dieta durante três dias. Mas depois, no dia do exame, não fui capaz de fazer a preparação final pelo que teve de ser adiado. De modo que o mais certo é morrer da doença, se for caso disso. A constipação parece estar controlada, embora me doa a garganta, tenha a voz enrouquecida e por vezes violentos ataques de tosse, especialmente quando arrefece, se falo mais alto ou durante muito tempo. O que me irrita é que na maior parte dos casos os exames nada acusam, de modo que quando não é uma virose (está na moda) é do stress e das contrariedades. Assim lá vou cantando, rindo, tossindo e ardendo por dentro.
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Setúbal, 1993.09.25/26

2 comentários:

De Amor e de Terra disse...

Continuam as retrospectivas "cinza", salvando-se apenas a cor dos ataques de
"Ternura"...
e que bem que sabem esses "ataques",principalmente quando são inesperados, não é verdade?!

Maria Mamede

De Amor e de Terra disse...

Um dia-a-dia que te custa a levar...
"Quem sabe se amanhã será Primavera!..."


Maria Mamede