sábado, 6 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (29)

* Victor Nogueira
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Está uma tarde cheia de sol, embora fria, que o tempo não é de calores. Alguém faz obras em casa; suponho que sejam do vizinho de baixo as marteladas que ressoam enquanto toda a tarde se tem ouvido o ruído do tractor removendo terra e pedras lá em baixo, concluídos que estão os edifícios até agora em construção aqui em frente.
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Já comprei um carro novo, um Ford Fiesta, embora só mo entreguem para a semana. Preferia que fosse assim como branco amarelado, para se notar menos o pó, mas não havia e acabei por ficar com um cinzento-azulado metalizado, uma côr também bonita. Entretanto tenho que desfazer-me do meu Renault 5, velho e cansado companheiro de viagens em Portugal, do Algarve até ao Minho. O dinheiro que receberei com a sua venda (25 a 50 contos) não me dará nem para o tabaco (que aliás não fumo senão em baforada dos outros!), mas transferindo os seguros para o novo sempre faço uma poupança anual de 25 contos. Para além disso precisa dum conserto de 30 e tal contos. Mas, como não encontro a Maria do Mar e como anda ausente de mim e não me falou mais no assunto não será nele que aprenderá a conduzir, pois para outro fim não me interessaria ficar com o Renault.
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Comecei já a fisioterapia e sinto-me melhor da espinhela. (...)
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Em Dezembro irei gozar o resto das férias. Ainda ficarei com sete dias de folga por trabalho extraordinário não remunerado, que espero aproveitar para ir ao Porto em Dezembro.
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Recebi uma proposta para ir trabalhar para Lisboa, pelo menos durante um ano, com possibilidade de não utilizar o meu carro em serviço e nas deslocações para casa. Mas ainda não voltei a abordar a questão, em parte porque não me apetece fazer diáriamente a viagem entre Setúbal e Lisboa, em parte porque não me apetece ficar em casa dos meus tios, em parte porque prefiro saber primeiro os resultados eleitorais. (...)
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Numa rua da Baixa reencontrei Joana Com Sabor a Cravo e Canela, de quem não sabia há muito e fiquei contente e comovido por voltar a vê-la.
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Setúbal, 1993.11.20
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Hoje, que escrevo á Maria do Mar, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que ela me lê, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias á nossa frente.
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(...) Gosto muito dela e ás vezes parece-me que sem ela a vida não tem sentido. (...) Mas ela constrói uma fortaleza, perante mim e á sua volta, cheia de incerteza, nevoeiro e "sentinelas". Mas eu não quero conquistar fortalezas nem convencer sentinelas. Queria apenas que fôssemos um campo aberto onde o mar e a brisa corressem livremente. Queria apenas e simplesmente estar com ela, sem armaduras e sem este cansaço e sem esta fartura duma vida cinzenta e sem horizontes.(...)
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Procuro não ter pena de ninguém. De mim rio-me com frequência (ainda não perdi a capacidade de fazer humor com as minhas desgraças e desgostos e talvez seja por isso que ainda me vou mantendo à tona). Dos outros não me rio. Procuro ajudá-los, ser-lhes prestável, dar-lhes a minha solidariedade. Sobretudo com os actos e menos com palavras, por muito belas e grandiloquentes que sejam.
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Setúbal, 1994.01.01

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Para além do cinzento dos dias, aparece às vezes, ainda que a medo, uma restiazinha de sol e um pouco de azul...
e mesmo sabendo rir-te do que sabes de ti, a dor é perene!


Beijo

Maria Mamede