domingo, 30 de dezembro de 2007

Do rio que tudo arrasta ... (7) - sobre a «Liberdade»


* Victor Nogueira
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Eu nunca votei nesta gentalha que governa, aqui e lá fora, a favor dos grandes mas alguém votou e lhes tem dado maiorias e confiança e se ao fim de 30 anos aqui o baile continua a ser mandado pelos siameses PSPSD e seus apêndices, marionetas de alguém bem c$frado que nos considera seres desprez$ve$s, eu e muitos outros, em todo o mundo, sentimos na pele, na alma e no bolso as consequências das «l$vres» decisões do eleitorado.
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Isto não se resolve com «tristeza» mas há-se resolver-se, ou acabando o mundo num holocausto nuclear ou os deserdados que comem o pão que o diabo amassou, muito mais miseráveis que nós, correrem com senhores, senhoritos, capatazes e marionetas para construirem um outro mundo, não nas etéreas paragens, mas aqui, onde há lama, sangue, suor, lágrimas e miséria abaixo de cão.

Postal (1)

* Victor Nogueira
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Chove a cântaros e eu não tenho guarda-chuva. Se isto não melhora nos próximos 15 minutos não posso ir à aula.


Por 326 votos contra 320 a RGA [reunião geral de alunos] decidiu não apoiar a greve dos cursos complementares, que hoje de manhã se reúnem para debater a questão.


Em Beja 30 professores foram suspensos das suas funções pelo Governador Civil, creio que por se terem recusado a dar aulas enquanto o Liceu estiver ocupado. Em Évora o Liceu continua ocupado. Entretanto amanhã há um plenário de professores de Évora para definição duma posição face ao reajustamento de letra.


O Miguel agora é intratável e a sua demagogia comiceira é irritante. Anda todo empenhado em fazer a "Revolução", não sei bem ainda se popular, se palaciana. Enfim ...


E por hoje é tudo. Um abraço amigo do VM

(MCG princípios de 1975) - Évora

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Em conversa com ... (6) TODO O MUNDO E NINGUÉM


Olá :-)
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Isto do retangulozinhos dos comentários é como o voice mail: deixamos ou não msg, deixamos ou não comentário. É preferível ouvir uma msg que tentar adivinhar a quem pertence aquele telefone.
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E nos gravadores de voice mail, podemos ouvir a voz de quem nos telefonou a as suas palavras, ficamos a saber quem nos telefonou e podemos assim retribuir.
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Não é forçoso dar sempre sinal de vida, mas é sempre bom sabermos de quem nos visita e que não estamos a falar sós no meio do deserto.
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Claro que nem o telefone ou a Web (blogosfera ou salas de conversação) substituem a presença pessoal, não virtual, nem o contacto físico. Porque sem estes, para quem for normal, restam a solidão, o silêncio e o vazio crescentes, mesmo que cada post tenha centenas de comentaristas, aos quais se torna impossível dar atenção.
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Assim. duma maneira ou doutra, é como se substituíssemos o amor pela masturbação ou pelo bordel ou o outro pelo espelho onde narcisicamente nos (re)vemos.
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E tudo isto, em meu entender, é a negação da vida, do amor, da amizade e da solidariedade reais. Poucos/lerão isto, mas também pergunto: a quem interessa que leiam e compreendam?
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Victor Nogueira
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imagem retirada daqui: Luna
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adenda:
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quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

TUDO NA VIDA SE TRANSFORMA E NADA É IGUAL AO QUE JÁ PASSOU, EMBORA SEMELHANTE POSSA PARECER!

TUDO NA VIDA SE TRANSFORMA E NADA É IGUAL AO QUE JÁ PASSOU, EMBORA SEMELHANTE POSSA PARECER!

Bem, pessoal, embarcando na quadra natalícia que cada vez menos festiva é, vai sendo tempo de deixar os habituais votos de boas festas e bom ano, embora cada vez mais sombrios sejam para a maioria e para a humanidade os dias que se avizinham.
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Tudo muda e o Pai Natal não passa afinal duma invenção da Coca Cola e o Menino Jesus para uma certa parte da humanidade que nisso cria já deixou de oferecer prendas ou mesmo responder aos díspares ou contraditórios pedidos que ainda lhe fazem, mentalmente, em reza ou por escrito.
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Vejam lá como são as coisas. Lá em Luanda - Angola - como aqui no Puto (Portugal) fazia-se a consoada com bacalhau e rabanadas e arroz doce e aletria e bolo rei e nozes e pinhões e passas e camarão e no Ano Novo champagne e fogo de artifício iluminando o negrume da noite, deslumbrantemente reflectido nas calmas águas da baía. E havia também árvore de Natal com bolas coloridas e lâmpadas pisca-pisca e fios brilhantes multicolores. A coroar a árvore uma estrela brilhante. E na véspera, lá se punham os sapatos à espera do dia seguinte, bem de manhã cedinho, para, alvoraçados, vermos as prendas que o Menino Jesus lá colocara e que pedidos haviam sido satisfeitos. E juntarmo-nos depois todos, nos quintais ou na rua ou de casa em casa, para vermos as prendas uns dos outros. Lá em casa, livros [em francês, português ou inglês], muitos, mas também soldados de chumbo ou de plástico, miniaturas de carros, chocolates, aviões, engenhos mecânicos, construções de armar, em cartolina, madeira ou de metal (meccano), um microscópio, uma bicicleta, uns patins, a máquina fotográfica «caixote» da Kodak ... E com as construções de armar e outras miniaturas se ia aumentado todos os anos a «cidade» do comboio eléctrico, que da primeira vez o meu pai armou em surpresa por entre a louça da mesa de jantar, no quintal onde comíamos habitualmente. Davam-se e recebiam-se muitas prendas.
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Mas nem tudo era igual. Em Luanda, salvo no presépio, não havia nem burros, nem ovelhas, nem pastores ... Nem neve, primeiro substituída por flocos de algodão hidrófilo e depois por uma bisnaga de spray mais «realista». E também não havia frio - era tempo de calor e também das grandes chuvadas e assustadoras e ensurdecedoras e relampejantes e rápidas trovoadas trovejantes - o pino da estação quente - e muitas vezes o dia de Natal era passado na praia, tal como os antecedentes e subsequentes, e à noite jantava-se fora, num restaurante na Ilha [do Cabo] ou em casa de uma das muitas famílias amigas com quem se convivia durante o ano.
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Depois, com a entrada no Liceu, a realidade dita pela minha mãe - quem dava as prendas não era o Menino Jesus mas sim os Pais, os familiares, os amigos e conhecidos. E do Natal subsistiu apenas e durante muitos anos a troca de presentes e o (re)encontro da família. Mas tudo passa e o tempo vai afastando as pessoas e levando aqueles que povoaram a nossa infância, meninice ou adolescência a sumirem-
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E o que fica hoje é a voragem das prendas apressadamente compradas como obrigação ou simples ritual, os postais, os telefonemas, os sms ou as mensagens electrónicas, cada vez mais apressados ou despersonalizados. E o sem sentido dos rituais e o vazio e a pressa deste tempo passar rapidamente na voragem do nada, papel de embrulho rasgado e lançado para o cesto dos papéis.
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E pronto, aqui fica o meu texto personalizado. Depois das duas séries antecedentes dedicadas ao «cartoon e a quadra natalícia», fica uma «antologia da poesia portuguesa de Natal» fruto das minhas memórias e das pesquisas que fiz na WEB, antecedida dum texto retirado dum blog que de algum modo subscrevo. São perspectivas ou abordagens diferentes da quadra e do seu significado e contradições. Por curiosidade, segue também uma pequena recolha de provérbios populares em que surgem referências ao Natal.
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Um abraço, a estima e a amizade do
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Victor Manuel
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2006.12.19

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

CONTO DE NATAL

* Victor Nogueira

CONTO DE NATAL

OU DE COMO NO MELHOR PANO CAI A NÓDOA


Era uma noite escura. O vento uivava entre os vidros partidos; de quando em vez um relâmpago rasgava o horizonte, iluminando com um tom esquálido o quarto onde sobressaiam uma tosca mesa, as malgas vazias e quatro desconjuntadas cadeiras. A um canto, encurralados, cinco ratinhos tremiam, não se sabendo bem se do frio, se do receio da enorme bota cardada que rapidamente descia sobre as suas lindas cabecitas, de bigodinhos eriçados.

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Subitamente, ouviu-se um tremendo chop e um líquido vermelho esparramou-se e salpicou de rubro o lívido rosto de duas criancinhas que desalmadamente choravam a morte dos seus queridos hamsters.

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Uma senhora rica e bondosa lhes tinha dado na véspera, quando pelo amor de Deus e da Virgem sua mãe pediam uma esmolinha, por causa do pai não receber salário há dez meses!

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Soluçando aflitivamente as criancinhas, agarradas à saia da sua mãe, que era virgem não o sendo balbuciavam:

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“Já não temos ratinhos para a Ceia de Natal”

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Setúbal 1987.10.23

domingo, 23 de dezembro de 2007

Victor Nogueira - Natais meus no antigamente





Porto (foto MNS)
Évora [Serra de Ossa e Mindelo]



Évora (Rui com a avó São)


Évora (Celeste com Rui e Susana)


Setúbal (Celeste com o Rui) #



Évora (a Mãe, o Pai os Filhos)

* Victor Nogueira
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-------Luanda – Natal 1956
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A mãe disse-me que não era o Pai Natal que nos dá os presentes, e sim os pais, o que me entristeceu bastante (Diário III)
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Como passei o natal de 1956 [13.1.1957]
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Eu passei as férias a estudar e a pôr os cadernos em dia. Ao domingo ia para a praia. No dia de Natal eu e o meu irmão levantámo-nos muito cedo e fomos ver as prendas. Das que eu gostei mais foram um relógio (de pulso), duas máquinas fotográficas e uma caixa de aguarelas. Às 10 horas fui à missa. Fomos almoçar a casa de um senhor que é dono da loja Fernandes Gaspar e Irmãos. Depois [fomos] até ao campo. Andámos a ver os buracos feitos pela Petrofina. (Diário III)
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Luanda. 24 de Dezembro de 1958
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(…) Fomos à Lello, eu, o Pai e o Zé. Eu comprei livros: «A Grande Aventura» de Nevil Shute e «A Terra da Escravidão” de H. Stanley e o «Álbum Enciclopédico das Raças e Costumes». O pai comprou-me, como prenda de Natal, os livros seguintes: «História dos Balões», «História da Electricidade Estática», «História da Radioactividade», «História do Telefone» e «História da Fotografia», Todos da autoria de Rómulo de Carvalho, e «História do Sangue», de Elídio Sardoeiro. O Zé comprou 8 livros de decalcomanias.
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À noite a Bia, mulher do filho do meu padrinho, trouxe-nos as prendas. A mim deu-me um jogo de tiro ao alvo e ao Zé um automóvel de corridas e uma estação de serviço.
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O João Carlos e a Estrela ofereceram-me um livros «História do Traga-Mouros», que já tenho. O João Gaspar e o senhor Gaspar foram para Pointe Noire. (Diário I)
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Luanda, 25 de Dezembro de 1958
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Levantei-me às 6 horas. Depois de me ter vestido e lavado fui ver os presentes de Natal. Além dos que tive ontem, os meus pais deram-me um jogo de futebol que se chama Kika-Goal, uma pistola com cinto, apito e estrela de xerife; do José João 4 livros: «Mistérios e Maravilhas da Natureza», de Walt Disney, «Louis Pasteur» de Alida Sims Malkus, «Benjamin Franklin», de Enid Lamont Meadowcroft, «A Conquista do Pólo Norte», de […] Shipton e um carro Wolkswagen; do Rui [Almeida] tive um automóvel de baquelite.
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Fui à missa das das 9 horas e 30 minutos, na Igreja do Carmo.
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O Zé teve dos meus pais: um auto-bus eléctrico, da parte do José João um carro de bombeiros, um Wolkswagen e o «Álbum Enciclopédico das Raças e Costumes»; do Rui [Almeida] teve um autocarro de 2 andares; do João e da Estrela o livro «Portugal para os Pequeninos». O Pai teve um disco e um jogo de dominó; a Mãe teve um broche e um par de brincos e um disco; o José João uma chapa em prata para o carro dele.
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À noite fomos jantar à Pastelaria Docélia. Comi uma bifana.
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Recebi uma carta da tia Maria Luiza. (Diário I)
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[1997 ]
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-------(…) Mas a caminho do Norte, Alenquer era uma visão agradável, as casas pela encosta acima como se fora uma cascata, à noite iluminada e, no Natal, com gigantesco presépio cheio de luz. (Memórias de Viagem, 1997.11.16)
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Natal 1962
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-------O dia de Natal passei-o em casa [do avô Barroso]. À tarde fomos a Goios, onde nasceu o avô Barroso. (Diário III)
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Por cá tudo bem. Tem feito algum frio e há uns dias que não conseguia pegar na caneta para escrever. No dia de Natal fomos a Goios. Gostei do passeio. Ontem o tio [Zé Barroso] foi a Vila Nova de Gaia, a Matosinhos e à Foz do Douro e eu fui com ele.
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Anteontem houve um tremor de terra, mas aqui no Porto parece que só se abriram brechas num prédio. Em Lisboa é que o sismo teve maior intensidade, tendo abatido alguns telhados e rachado as paredes de muitos prédios. (...) Já estou a gostar um bocado mais do Porto. Contudo não modifiquei a minha opinião: é uma cidade triste e velha. (NSF - 1962.12.21)
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Vi nevar pela 1ª vez, quando ia para casa do avô Luís, e à tarde, quando fomos ao café Astória. (1963.01.13 - Diário III)
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[ Páscoa de 1963 ]
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No dia 14 [de Abril], domingo de Páscoa, fui com o avô Barroso e o tio Zé a Goios, passando por Famalicão. Almoçamos em Goios, tendo-me aborrecido imenso. O «compasso» chegou por volta das 17 horas. À tardinha fomos para Pedra Furada. Revi com prazer a Lurdes e a Cândida e fiquei a conhecer a Celeste e a Amélia. Divertimo-nos bastante (Diário III)
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-------Évora
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69.12.18
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Pais e Zé
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Évora, Sé, Nave central (*)
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Afinal sempre vou ao Porto passar parte das férias. Ficarei em Rio Tinto até ao fim do mês. O[ tio ] José João dá-me boleia a partir de Lisboa. As aulas recomeçam a 5 de Janeiro.
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Essa saúde, como vai ?
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Não sei se vos escreverei antes do Natal. Se o não fizer, aqui ficam os meus votos de felicidades e um saudoso e amigo abraço para todos.
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Talvez aceite o convite da Maria Arnalda e passe uns dois dias com ela e família [na Figueira da Foz]. Saudades a todos.
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Um abraço amigo do VM







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Lisboa – 1 Janeiro 68 – Natal 67

Lisboa
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69.12.19
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NSF
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Évora, Praça do Giraldo e Banco de Portugal
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Lisboa está cheia de movimento e colorido. Encontrei há pouco o casal Armindo Gonçalves no Rossio. Sigo amanhã para o Porto com o José João. Vou jantar com um amigo meu e depois vamos ao cinema.

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Saudades do VM
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70.01.01
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NSF
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Matosinhos, porto de abrigo
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Estamos num novo ano, uma nova década que se inicia. O dia está a pôr-se bonito (São 14 horas). As férias estão quase a terminar e os exames aproximam‑se. Recebi ontem e finalmente notícias vossas. A véspera de Natal passei-a com o avô Luís e o dia de Natal com o avô Barroso. Logo talvez vá lá a casa. Afinal, e com certa mágoa, resolvi não aceitar o convite da Maria Arnalda, por falta de ocasião propícia.
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Lisboa
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70.12.20

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NSF
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Évora,

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Fonte das Portas de Moura
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É um domingo maravilhoso. Ontem estive em Setúbal. Falei com o dr. Armindo [Gonçalves]. Jantei com a Noémia. Amanhã ou depois encomboio para o Porto, onde ficarei até 1 ou 2 de Janeiro. Bom Natal. Saudades do VM

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Porto
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70.12.26
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NSF
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Porto, rua de Miragaia
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Hoje tentei pôr a correspondência em dia, mas aquilo está tão atrasado que devem ser necessários uns longos serões. A partir da recepção deste postal devereis começar a escrever‑me para Évora. Espero que tenhais recebido o SDS que enviei na véspera de Natal.. Que mais dizer? Estou na estação dos CTT da Batalha; a escrivaninha treme que se farta com o esforço que um "hominho" faz para fechar um envelope. Uma mulherzinha procura quem lhe preencheu um telegrama para dar‑lhe qualquer coisa. E ao contar‑me isto poisa‑me a mão no braço. Gosto da gente do Porto; parece‑me mais humana que a de Lisboa e de Évora. Saudades do VM
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1972 – Natal

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Évora moderniza‑se. Este ano o Giraldo terá iluminações natalícias. Vamos ver se as colocam antes de eu abalar ou não as retiram antes do meu regresso. (MCG - 1972.12.15)

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-------1972 - Um Natal em Beja

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Pois eu cheguei a Évora ontem à noite, cerca das 23:30, vindo de Beja, onde estive domingo e segunda, em casa dos tios do Camilo e na companhia de mais dez adultos e umas catorze crianças, do recém‑nascido ao Pedro e à Teresa, os mais velhos com os seus treze anos. [1] Aquilo não era uma casa, era um quartel familiar ... que me "adoptou" por dois dias. Por todas as salas não se viam senão miúdos. Domingo à tarde, horas antes da consoada, andava o Camilo ás voltas com a árvore de Natal e presépio, com a mania das perfeições e de as coisas serem como ele queria. Tenho a impressão que se não fosse o aparecimento da tia Emília, ou aquilo nem para o ano estaria pronto ou o tio Jacinto terminaria aquilo a grande velocidade, sem preocupações perfeccionistas. Sim, que afinal parecia‑me que o Camilo não queria nem deixava fazer, pedindo mas não aceitando as minhas sugestões. Enfim ... Fosse eu romancista e estes dois dias teriam muito peso na minha renomeada. O mais interessante foi a tia freirinha, a irmã Maria, que se percebi bem saiu pela primeira vez em 24 anos de convento, e que tentava catequizar as crianças com umas prédicas tais que nem ouvidas! Ah!Ah! Os miúdos é que se divertiam depois nos seus grupos, relatando e comentando as suas havidas conversas particulares, e que eu ouvi porque eles são desinibidos por educação - todos me tratavam por tu e por Victor, que é como eu gosto - e também porque não devo ter cara de polícia. Gosto de miúdos e acho que tenho um certo jeito para estar com eles. Desta vez o João passou o tempo com o "Vitinhas", subindo‑lhe para o colo, fazendo‑lhe imensas perguntas ou mostrando os brinquedos e o modo como funcionavam, brinquedos que, na sua maioria, ao fim do 2º dia já andavam muito combalidos. Entretive‑me com um automóvel electrificado, com comando à distância, o que permitia manobrá-lo em todas as direcções. (MCG - 1972 NATAL)
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Natal - 1973
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A ruas de Arraiolos estão também feéricamente iluminadas, fruto da quadra natalícia. Pela última vez! Amanhã já não se ouvirão cânticos religiosos pelas ruas. "Tudo acaba nesta vida, até nós.", como ouvi há pouco de passagem - um comadre confiar a outro, ali junto ao presépio, na praça - cujo pelourinho é, agora e por enquanto, uma palmeira. Arraiolos é uma terra pacata. Ali a cadeia está desabitada há anos, com uma indicativa bandeira branca numa das janelas. (MCG - 1973.01.08)

-------1973 – Natal - Goios - a Páscoa numa aldeia minhota


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(…)
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Porto - Foto MNS em auto-retrato

Porto - Natal de 1974 (Rua Fernandes Tomás)- avô Zé Luís (+), Alexandrina, tio Zé Barroso (+), Carlos, tia Teresa, Victor, tia Isabel, Manuel, (+) tia avó Esperança (+), Celeste (+), Maria Emília (+), avô Barroso (+), tio José João (+)

(+) já faleceram)

Goios (Barcelos)

Trouxeram o televisor lá de baixo da cozinha, onde estivemos no Natal, Estão a transmitir uma tourada do Campo Pequeno [em Lisboa] e toda a gente está entusiasmada, esquecida de meditar na Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, nesta casa onde há imagens e estampas devotas nas paredes da sala de estar, para além das fotografias do já falecido Senhor D. António "e do seu secretário e sobrinho, também padre mas que não chegou a bispo. (…) (MCG - 1974.04.16)
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Natal 1974 – Paço de Arcos (sozinho – tios no Porto)
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Natal – 1986 - Setúbal
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Este sábado é a Festa de Natal da Câmara, com teatro, desenhos animados e fantoches, para além dos brinquedos.
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Ainda não decidi se irei a Lisboa: aborrece-me ficar por Setúbal e depois impaciento-me com as criancinhas, que não têm culpa, mas em Lisboa desassossega-me não estar com a Maria do Mar. (Setúbal, 1986.12.11)

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Aproveitando a lassidão deste dia, fui dormir depois de almoço, para pôr os sonos em dia e para ganhar alento para logo ver na TV o filme da meia noite. 0 Rui foi brincar para casa do Chico e a Susana foi com a Cinda e demais amigas à festa de Natal da Junta de Freguesia de S. Sebastião. E eu, como não me apetece sair, por causa do frio mas também por causa desta chuva miudinha que todo o dia tem caído, pus-me a ouvir música no leitor de cassetes que a Susana "ganhou" na Festa de Natal da Câmara; primeiro o UHF e agora o Paulo de Carvalho e a seguir a Gal Costa. É daqueles leitores que tem uns auscultadores e que a malta jovem traz pendurados nas orelhas, na rua ou nalguns empregos. O Rui também ficou encantado com a prenda que Ihe coube, um robot que deita luz por todos os lados e muda de direcção quando choca com os obstáculos (Setúbal, 1986.12.14)
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-[1]. - Estes tios do Camilo eram os Brito Lança - ele médico - e tinham uma casa em Beringel, a poucos quilómetros de Beja. Do terraço da casa da quinta avistei pela primeira vez o espectáculo deslumbrante que foi contemplar o céu coberto de estrelas, sem a interferências das luzes da cidade a que estava habituado e que as escondiam.
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(*) - Esta indicação significa que o texto foi escrito num postal ilustrado cujo motivo é o indicado
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(# ) Fotografia de Victor Nogueira

sábado, 22 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (13)

* Victor Nogueira

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E DE REPENTE É COMO SE TODAS AS ESTRELAS SE APAGASSEM

De repente é como se todas as estrelas se apagassem ficando o cansaço e a velha vontade, por vezes renascida, de partir para longe, de apagar tudo, como se fosse possível recomeçar tudo de novo, rasgando o que escrevera, lixo para lançar aos quatro ventos, porque não ria, nem chorava, nem tinha uma pedra no lugar do sentir pelo qual se deixara envolver.
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Estava assim porque o tinha considerado seu igual e confiara nele e com ele procurara falar sem reservas. Parecia contudo evidente que ele jogava à defesa e que as palavras seriam para ele fogo de artificio e manobra de diversão por detrás das quais se escondia e protegia. Assim o julgava, apesar de poder considerar-se má leitora dos factos e dos gestos, como outrora o fora de outras pessoas, nuns casos porque se ficara pelas palavras, noutros, como no presente, por ter procurado "ler” para além delas.
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Talvez a considerassem presumida porque em determinada altura do seu relacionamento não acreditara em tudo o que ele lhe dizia, relativamente a ela própria e aos sentimentos que afirmava nutrir por ela: seria uma presunção diferente da que ele tinha, porque ela perante ele se descobrira, talvez cedo e desajeitadamente demais, talvez porque tivesse lido nele aquilo que desejara ler. E assim, conhecendo-lhe os sentimentos dela, seria levado a pensar que lhe bastaria dizer quem era para que ela largasse o trabalho ou interrompesse a reunião para atendê-lo ao telefone, fosse do emprego, fosse da casa onde morava. Era simultaneamente verdade e mentira afirmar que pouco ou nada lhe interessava saber se ele estivera, estava ou algum dia poderia vir a estar "enamorado” por ela. Era de presumir que fosse adulto, crescido, responsável; então porque não haveria de acreditar no que ele lhe dizia e deixar-se de "poesias" e de imaginações!?
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Recordava-o por vezes com uma grande ternura mesclada de inquietação e desassossego. Lembrava-se das primeiras vezes em que o vira, quando procurava conhecê-lo, e de como se encantara por ele. Recordava-se das vezes em que pretendera envolvê-lo numa longa e doce caricia ou o desejara como um homem pode ser desejado por uma mulher. Como esquecer a rede em que se deixara enlear, que ele muitas vezes parecera também tecer e outras rompera? Recordava o seu jeito gaiato, sorridente e brincalhão, sem esquecer os desencontros e as vezes em que ele disparatara ou faltara sem dizer água vai, apesar da importância que ela, parvamente, dera à sua presença e companhia.
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Ele dizia-se amante da liberdade e no entanto não poucas vezes desrespeitara a dela, deixando-a a falar sozinha, com a refeição fria ou o fim de semana “estragado". Ele dissera preocupar-se com o efeito que os seus actos e as suas palavras poderiam provocar nos outros, por recear e não querer magoá‑los, mas não poucas vezes a magoara, sem que ela soubesse verdadeiramente distinguir quando falava a sério ou na brincadeira ou se estava apenas desatento por feitio ou preocupação. Não podia esquecer-se das vezes em que ele lhe entrara pela casa dentro, enchendo o ar de poalha dourada e refrescante, libertando a sua fragilidade, como ave inquieta na brisa que ela era.
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Recordava-se disso e de muitas coisas e palavras, que gostaria tivessem (o)corrido ou acontecido de outro modo. E lembrava-se de algumas cartas, poucas, duas ou três, que lhe escrevera, arrumadas no fundo duma qualquer gaveta, porque resolvera deixar sedimentar as palavras, que deste modo, com o decorrer do tempo, haviam perdido o sentido e a oportunidade. Pensava ser natural que os homens e as mulheres procurassem uns nos outros amizade, ternura e carinho, considerava natural que os homens e as mulheres se sentissem mutuamente atraídos por serem de sexos diferentes ou que, se fosse caso disso, pudessem ir para a cama um com o outro, dum modo saudável, sem táximetro e tabela de preços consoante o serviço.
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Mas nem sempre acontecia o que deveria ser natural, não poucas vezes porque muitas e variadas razões levam a renegar, condicionar, proibir e "regulamentar" a sexualidade e as suas manifestações duma forma que nada tinha a ver com a expressão saudável da vida.
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E fora como uma expressão de vida e um cântico de alegria que ela o considerara, de forma aberta. No entanto e talvez demasiado cedo partira, quando em vão por ele esperara, para logo de seguida considerar o amor um bem que suaviza, quando alguém afaga a nossa vida, o que lhe dissera inopinadamente.
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Há na vida um tempo e uma ocasião para tudo e para cada coisa, segundo expressava um belo poema judaico, e por isso talvez as palavras e os sentimentos dela tivessem sido expressos demasiado cedo.
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Entendia ser natural que o desejasse como natural seria que outros homens a desejassem, mas não ele, que até era um homem que sabia "provocar" as mulheres, que a "provocara" não poucas vezes, embora dum modo que na altura lhe parecera "natural", sem maldade.
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Contudo, o passar dos dias e os "desentendimentos” pelo que talvez fosse ou tivesse sido por ambos desejado fazia com que ela pensasse já não ser natural que ele "provocasse" e amesquinhasse (consciente e deliberadamente ou não) quem "provocara" (por ela não o entender), apenas porque teria tido com a mulher com quem vivera experiências, isto é, vivências, humilhantes ou perversas, gerando situações que ambos não haviam conseguido ultrapassar (supondo que ele desejaria ultrapassá-las), por preconceito ou falta de simplicidade ou por utilizarem gestos e códigos diferentes. Situações que não haviam logrado superar em busca da amizade, do amor, da ternura, do prazer, da paz ...
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É um facto que fora por ele seduzida e que, ao considerá-lo seu igual, procurara sobretudo a sua amizade. Mas tendo ambos códigos e chaves de leitura diferentes, só veramente poderiam saber quem eram através da convivência, para descobrir o que estava para lá das categorias redutoras que (des)ajudavam ao entendimento das pessoas. Porque ele falava nas mulheres dum modo simplista, cómodo, mas irreal (são todas iguais, logo são todas tratadas da mesma maneira); outros falariam nos homens (são todos iguais, andam todos ao mesmo, logo devem ser todos tratados da mesma maneira).
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E no entanto, por temperamento, vivência e "leitura", ela sabia que há homens e mulheres, com características comuns, é certo, mas que para além disso cada pessoa tem as suas características próprias, especificas, da sua cultura e classe social; para lá das "cómodas” categorias e definições redutoras ela procurava o que existe de próprio, de pessoal, fosse no Zacarias ou na Carlota, fosse na Maria ou no Manel, independentemente de se não empenhar em "convencer” as pessoas, o que por vezes em nada facilitava a sua relação com outrem.
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Falava com as gentes, é certo, mas não como apóstolo ou profeta; buscava aquelas com as quais se identificava, afastava-se das que nada tinham em comum com ela naquilo que reputava essencial, aceitava e tolerava as outras.
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Sendo assim, é natural que tenha pensado e lhe tenha dito "gosto deste homem, gosto dos filhos dele, postaria de com ele viver e compartilhar o dia-a-dia". É natural que ele lhe respondesse ter outros objectivos prioritários na vida e que ela estava à margem deles, apesar dela o considerar seu igual e procurar respeitar a sua liberdade. Admitia contudo que algumas vezes os seus gestos e atitudes para com ele pudessem parecer desmenti-la, apesar de serem também condicionados pelos gestos e atitudes dele. Admitia pois que ele quisesse provar que sozinho poderia triunfar, sem a solidariedade dos outros, e que ela o desejava "controlar", a ele que estava farto de prisões, pressões e bofetões; por isso talvez tivesse sido erradamente levado a pensar para consigo mesmo que o paleio é sempre igual e que no princípio são tudo rosas e arco-íris, para lá dos quais surgem os espinhos e as tempestades e os ventos ciclónicos.
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Tudo bem, continuaria ela a pensar, ninguém a mandara ser apressada, sem dar tempo ao tempo, embora depois os erros se possam a vir a pagar caro, face à brevidade da vida e à impaciência dos mortais. É natural que os “sonhos" não sejam os mesmos para todos, é "natural" que para algumas pessoas fique a nostalgia dos sonhos que se sonharam mas não viveram ou falharam. Afinal os sonhos nem sempre são pesadelos e por isso podem também ser a expressão dos anseios com vista à concretização, talvez por vezes dum modo errado e desajustado, dos desejos de uma vida diferente, melhor, mais cheia e saborosa.
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Como a que ela pensara encontrar nele e retribuir-lhe!
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Setúbal 1990.03.19/20
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(Victor Nogueira, sobre uma epístola de S. Sebastião aos gentios, em 4 de Outubro de 1989, a D.)
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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (12.2/2)

* Victor Nogueira
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continuação
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Vês, João, vês como és indiscreto no que escreves sem cuidar de mim, sem cuidar que há mil olhos e mil ouvidos e dez mil bocas em nosso redor ?”, pelo que João Baptista descansará na doce, fresca e apetecida pele com sabor a cravo e canela e lhe dirá "Sê simples, Sebastiana, sê simples e não digas desta água não beberás porque eu não quero e se não queres, então cala-te, e se queres não brinques com o fogo e o vento que tudo destroem ou ajudam à vida conforme o uso que deles fizermos e a sabedoria que em nós houver. Porque as tuas palavras negam o que o teu hábito provoca, os teus gestos renegam o que o teu corpo pede e a tua voz e o teu olhar denunciam, haja ou não sinceridade e/ou descuido da tua parte", ao que Sebastiana Pé Ligeiro e Força Nas Canelas responderá "Passado foi o tempo em que tal sucedeu porque tu não me entendes(te) nem eu a ti e por isso hoje sou mais resguardada perante ti,"

E neste ponto o narrador olhará para o relógio na praça pública dizendo para consigo "Bolas, já são sete e trinta da tarde e ainda não parou de chover nem Sebastiana apareceu; lá se lixou o jantar mais a bela companhia e a doce conversação e novamente não há novas nem mandados." Se fosse noutro tempo João preocupar-se-ia mas hoje apenas encolhe os ombros dizendo com certo amargo de boca "Como se pode exigir ou pedir ao vento que seja o sol e o mar, quando esse vento é apenas vendaval que levanta alterosas ondas ou tempestades de areia, que tudo varrem na ânsia incontida das palavras e dos gestos equívocos ou sem sentido? Como pode o cego dar vista ao cego ou o mudo falar com o cego?!."

E o contador de histórias dirá "Basta, João, basta, que vais a reboque das palavras apenas por que uma certa Sebastiana Raposinha te entrou pela casa dentro enchendo-a de cor e alegria e que por isso pensaste que nela encontrarias amizade e com ela paz e serenidade, que o resto viria por acréscimo se e quando fosse tempo ou oportunidade de acontecer. Mas vós ambos sois duas crianças sem sabedoria nem paciência, sem que se conheça bem qual de vós é pior aprendiz de feiticeiro." E deste modo um envolvente e pesado cansaço entrará dentro de João Bimbelo, invadindo todos os poros e o menor interstício, as palavras e os gestos esfarelando-se em negro de chumbo, um areal no lugar do coração, vulgaridade quanto baste, uma gasta armadura impedindo a pirueta e o sorriso de quem lança os males por cima do ombro e prossegue a caminhada de mãos nos bolsos e assobio nos lábios, a passada larga e despreocupada, em busca de outros portos e marés onde finalmente João Baptista possa ser Descansado da Guerra.

E novamente o narrador se intrometerá "Chega, porque se ambos sois amigos então acabai com a guerra das palavras equívocas e dos gestos com muitas leituras para o mesmo desejo e olhai para além do vosso umbigo, pelo que João encerrará a escribadura porque é necessário cozinhar o jantar, necessidade prosaica pese embora a sua vitalidade essencial. Mas antes dirá “Cuida de ti Sebastiana Mandrágora, pois os homens não são todos iguais, porque sendo assim também o são as mulheres e então tu serás na voz do povo e das comadres falsa, fingida, vendida, pronta a trazeres os homens pela arreata nesta vida onde se cruzam os jogos de poder que terminam na prisão de alguém e lá se acabam a tua diferença e o teu amor à liberdade!" E Sebastiana Mosqueta Rosada responderá com o seu riso de menina gaiata que nunca se sabe quando é maldosamente trocista ou simplesmente brincalhão e lançará novamente João às lonas dizendo "Olha por ti, João, olha por ti que és demasiado transparente em determinadas situações e demasiado racionalista e pouco terra-a-terra, levando as coisas muito a sério e tudo queres entender com os olhos da razão embora tu também brinques e por vezes digas piadas", pelo que o narrador em vão se intrometerá porque as palavras são como as cerejas, atrás de umas outras vêm, impedindo o encerramento das escribaduras e oralduras, transtornando deste modo a melhor narradura assim descarrilada.

"É como dizes, pregoeiro, é como dizes, e eu João Bimbelo o sei com um saber de experiência feito, pois esta mulher entrou-me pela casa dentro e libertou mil crianças dentro de mim que sentiram o veludo da sua pele morena, tão fresca e suavizante e por isso lhe disse gosto de ti, de falar contigo, de estar contigo, gosto da tua companhia, de ver-te na minha casa como peixe na água, de sentir o teu corpo junto ao meu. E pedi-lhe a sua amizade, mas ela deixou-me demasiadas vezes a falar sozinho e não Ihe vi ainda gestos de amizade e ternura antes palavras vãs acerca da minha "individualidade" e da minha paciência, como se os "amigos" fossem elásticos onde descarregamos as nossas macacoas e pedradas e por isso, quando penso nela, não encontro nem o sol nem o mar nem estrelas nem crianças correndo dentro de mim; quando penso nela encontro apenas um enorme e opressivo silêncio, uma garra no lugar do coração. E no entanto, Sebastiana, quantas vezes me provocaste, quantas vezes julguei ler em ti sinais escondidos que me levaram a crer que poderias estar enamorada de mim e que te resguardarias com as tuas fugas e as tuas palavras agrestes ou por cima dos ombros? E pergunto ao tempo que passa porque te procuro ainda, Sebastiana Pé Ligeiro e Força nas Canelas, quando há tantas Marias na terra, e porque continuo aprisionado do que resguardado ou inexistente é, porque continuo preso a uma Sebastiana Mil-Sóis que uma noite me entrou pela casa enchendo o ar de poalha dourada e nela julguei encontrar uma mulher de quem valia a pena ser amigo?”

E João dirá para com os seus botões que a procura, é verdade, talvez demasiadas vezes, embora não seja cãozinho levado pela arreata, procurando a dona que o maltrata, ao que o narrador acrescentará que ele a procura porque gostaria de ser amigo dela, porque a respeita e considera, porque se preocupa com ela, porque Sebastiana Morgana é importante para ele e porque, sabendo ela disso, o magoa porque o atende por vezes com um jeito displicente, desprendido e frio, como se o estivesse a pôr com dono ou a armar-se em pessoa importante e distante, especialmente quando há terceiros presentes. E João dirá “É uma pecha dela, embora eu pense que talvez o não faça por leviandade ou ligeireza, mas sim por falta de atenção ou apenas porque se fecha por estar demasiado maltratada (ou mimada?) e com receio de exteriorizar os seus sentimentos e o seu pensar, por autodefesa ou porque está ansiosa, preocupada ou com a pedrada. Ao que Sebastiana, subitamente séria, dirá "É como dizes" e mais nenhuma palavra sairá da sua boca, embora pense para consigo o pensamento que esconde por detrás das palavras ásperas ou desprendidas, quando não se descuida e no tom de voz transparece o jeito de quem está enamorada, de quem é menina em momento de fraqueza e carece de quem a respeite e acarinhe, embora João Baptista esteja seco dos seus xutos e pontapés e nada lhe permita concluir que não está errado nas suas leituras.

E por algumas vezes o sol apareceu no horizonte para lá desta janela e se pôs para lá da parede que lhe está defronte e muita água caiu das nuvens e chegou ao rio, enchendo a cidade de lama e areia, encoberta por um céu de chumbo debaixo do qual inúmeras aves têm voos rasteiros de pardal, como se fossem gaivotas m terra. E João Baptista lerá tudo isto e um filme de pedaços esparsos perpassará pela sua mente e pensará como as palavras enganam e os gestos iludem se não tivermos a chave certa que nos dê o sentido oculto e verdadeiro da vida e dos acontecimentos.

E João está sozinho, embora lá do fundo venha o ruído da televisão ligada que outros vêm, impedindo que ponha a música em crescendo que o envolva e pacifique, Vivaldi, Bach ou Mozart, sobretudo, ou mesmo as valsas vienenses. Está pois João sozinho, com um peso no lugar da alma, um aperto no lugar do coração, o corpo como se fora um monte de roupa em rodilha ou largada ali no chão, antes de ir para a máquina, cesto de roupa suja, melhor diria, usada ou gasta. Imagens velhas que renascem periodicamente. "Porquê, Sebastiana, me sinto por vezes tão sozinho, tão vulnerável, tão desolado, tão dependente dos outros, de ti, por exemplo, que penetraste na minha vida como a raiz entrando pela muralha deste modo esfarelada e desagregada, sem que se conheça bem onde acaba a pedra e começa o tronco velho e carcomido?" E Sebastiana Raio de Sol dirá "Não é assim que te quero, frágil e vulnerável, mas sim macho forte e duro que me cerre os cabelos esvoaçantes como o vento em cujas ondas navego sem porto nem maré.”

E João Bimbelo rir-se-á de si mesmo e da vida e de tudo, com um riso radiante que no entanto deixa mil traços negros dentro de si e lembrar-se-á de como são diferentes os sinais e as palavras, de como lhe parecera tímida a primeira e segunda vezes que a vira, de como lhe parecera uma pessoa sensível, culta, serena, inteligente e atenciosa, de como lhe parecera uma pessoa adulta apesar da juventude do rosto e da alma!

De repente João olha para a vidraça e verá para lá dela o negrume da noite e um caminho de luzes e, como se fora num espelho de breu, o reflexo esmaecido e vago da sua imagem à mesa, sentado no silêncio da madrugada, entrecortado apenas pelo escape livre e agressivo das motorizadas e pelo velho matraquear da lenta máquina registadora do seu pensamento demasiado rápido, deste modo disperso por outros caminhos e atalhos.

E Sebastiana Princesa perguntará “De que te ris, João, de que te ris se estavas com um ar tão sério e tão meditativo, porque mudaste de repente?" Então João rir-se-á novamente e dir-lhe-á "Porque se escondem tanto as pessoas? Porque te resguardas tanto?"

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E muitas vezes o sol, cada vez mais alto, apareceu para lá do horizonte e se pôs defronte, sucedendo-se os dias e as noites com muitas e variadas feições, sem que o escribador passasse para alem da página defronte dos olhos, muitas vezes escrita e retomada e amarfanhada. E passaram o Natal e o Ano Novo e também o Carnaval a caminho da Páscoa e as linhas por lá ficaram no fundo da pasta ou no bolso do casaco e poucos foram os escritos que nesse tempo surgiram e grandes os navegares sem porto nem maré, perdida a colorida janelinha.

Porque Sebastiana Mandrágora, Princesa dos Mil Sóis Em Pedra Dura, não passava de mulher com jeito de menina em permanente crise adolescente, em atitude e pose de quem gratuitamente pretende escandalizar ou afrontar o mundo, malbaratando a sua energia e encanto em tiradas de afirmação estéril.

E de tudo, para João Bimbelo Que Não Era Príncipe, ficará um travo amargo com sabor de areia, pouco interessando falar da amizade que se procurou como um bem frágil e precioso ou do céu coberto de poalha luminosa ou das noites cheias de sol e mar. Para quê pois continuar pensando em Sebastiana Balde de Água Fria ou recordar o seu canto ou a sua voz cativante? Para quê lembrar a macieza da sua pele morena ou a sua maneira de sedutora querendo ser seduzida, como no retrato à beira do lago? Tudo pertencia ao mundo das ilusões; tudo se perdera e já não interessava procurar a meada e a raiz dos (des)encontros para reencontrar o passado e nele o regresso ao futuro, nem falar da primeira e da Segunda vezes em que a vira nem dos tempos em que a esperara e ela aparecera, nem da "descoberta" dos sonetos de Shakespeare, nem da alegria pela sua presença no casarão de João Baptista, nem do seu jeito alegre e brincalhão, nem das jornadas de povoado em povoado ou à Praia da Liberdade Aprisionada, ou das vezes em que se sentara no chão ao seu lado ou repousara nele.

E João Que Não Chegara a Príncipe dirá que a felicidade não tem história e que todo o tempo é escasso para vivê-la e saboreá-la, acrescentando que a vida é feita de sonho (e também de mudança, como diria o poeta), embora vivido com os pés na terra, e que a vida é sempre feita de novos amanhãs, como dissera uma certa Maria Papoila Vai Com As Outras, embora fique sempre a mágoa ou a nostalgia dos sonhos que se sonharam e não viveram, do sol arrancado antes de florir.

Os sonhos que se não viveram pertencem ao mundo das ilusões e das sombras, dirá o narrador, e de tudo fica um pesado silêncio enchendo o ar e penetrando como breu em todos os poros e em todos os interstícios, bem temperado com um crescente desânimo para lá da viseira, juntando-se a outros pesos, fazendo surgir a pergunta se valera a pena encontrar e “conhecer” Sebastiana Maria da Pele Doce e Morena, que inspirara tantos bonitos textos que recebera com aparente agrado e lisonja e guardava num qualquer dossier, não se sabe bem porquê nem para quê.

E na recta final se mudou o discurso, sem boniteza, que não transparecia nestas linhas finais para encerrar com ponto mal alinhavado o solilóquio em torno de Sebastiana Princesa, dos Muitos, Cálidos e Ásperos Nomes.

Como quem arremata para que o tecido se não esfie e desfaça, levado pelo vendaval!

E retirando-se o narrador, foi encerrada a escribadura, no palco abandonado renascendo o silêncio em mar de aparente calmaria.
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1989.12 e 1990.03.13/16SETUBAL E PAÇO DE ARCOS

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (12.1/2)

* Victor Nogueira
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SOLILÓQUIO EM TORNO DE SEBASTIANA BALDE DE ÁGUA FRIA, PRINCESA DOS MUITOS,

CÁLIDOS E ÁSPEROS NOMES, EM TEMPO DE XUTOS E PEDRADAS.

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E o narrador chegou à boca do palco e disse:

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João Bimbelo vivia na Quinta de Todos Nós envolto num sossego cinzento e morno quando Sebastiana Lua Nova lhe entrou pela casa dentro com o seu jeito esvoaçante e cintilante; não era João águia ou gaivota, mas sim pregoeiro ou contador de histórias, vogando pelas sete partidas do mundo numa barca mal aparelhada e dele apenas se podia dizer que era o sol e o mar em busca da brisa suave e refrescante ou da verde planura na cidade dos homens.

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Quando Sebastiana Mil Sóis repousava em João Bimbelo era como se um rio enchesse a sua casa com o murmúrio de mil candeias, semeando o ar de cor e alegria. Mas demasiadas vezes o ar deixou de ser belo e calmo e o mar verde e sereno, demasiadas vezes a brisa se transformou em vendaval para além do qual não se vislumbrava qualquer mar de calmaria, por mais sedutora, cariciante e alegre que fossem a voz e o jeito da Princesa, mulher-menina em fugas constantes em torno do redondel, mulher-achada de mil promessas em flor fugidas!

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E no entanto eram doces e macios a pele e os lábios de Sebastiana Verde Sol, brilhantes de mil promessas os olhos da cor do trigo em flor, um campo de giestas com sabor a cravo e canela a ondulante nau onde vogava a Princesa que encantara João Bimbelo, que sem nada de ratão ou gatarrão se tornou novelo enleado com fraca rede na roca de Sebastíana Raio de Sol,

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Nesta altura Sebastiana Mil Sóis soltará uma das suas deliciosas gargalhadas com sabor a menina dizendo com agridoce sorriso “Não há meio, João, de ganhares juízo, de me tirares do pedestal em que me colocaste. Pois as princesas morreram há muito; as que existem em teu pensar não são raposas nem raposinhas e o derradeiro dos príncipes há muito que faz tijolo e não há manhãs de nevoeiro ou dias de sol que o façam renascer, mesmo que me agrade o que escreves e dizes de mim com tal gentileza, encanto e sinceridade"

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E com duas palavras, um sorriso (trocista?) por detrás dos óculos escuros., um jeito de encolher os ombros de quem olha para outro lado com a pressa e enfado de viver depressa, derrubará Sebastiana Mandrágora o xadrez calculadamente encenado por João Baptista Cansado da Guerra ou o improviso repentinamente suspenso no vazio!

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Coitado do João Bimbelo, dirá talvez o espectador parafraseando Pessoa, coitado do João Baptista que um dia se agradara duma certa Sebastiana Verde Sol, Princesa de muitos e cálidos nomes. E neste ponto do conto João Baptista Cansado da Guerra sentar-se-á defronte de si mesmo e rir-se-á dos seus (des)enganos porque um dia se agradara de Sebastiana da Cor do Trigo em Flor.

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E o riso de João Bimbelo ficar-se-á uma vez mais pela flor da pele, mas dessa marca poucos se aperceberão, porque João Baptista fora seduzido e se agradara de Sebastiana Princesa dos muitos e cálidos nomes, primeiro porque a considerara diferente das muitas Maria-Vai-Com-As-Outras que enxameavam os campos e o povoado e em segundo porque é natural que um homem se agrade duma mulher, especialmente se ela for sedutoramente sedutora e nela se reconhecer como igual em busca da liberdade e do horizonte vermelho.

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E com nova risada, com seu jeito de lançar os cabelos para trás, gracejará Sebastiana dizendo que se trata duma indómita amazona em busca de outro sol e de outro mar e que o seu caminho e a sua rota passam ao largo de João Baptista, o qual lhe dirá que a liberdade dela não se cruza com a solidariedade para com os seus iguais, antes cavalga em redor do seu belo, doce e apetitoso umbigo reflectido em cristalino espelho obscurecido, como pena esvoaçante levada pela brisa ou pela corrente, que deste modo perdiam a sua qualidade refrescante

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E nesta roda do ora digo eu ora boquejas tu se foi escoando o tempo e os segundos somando horas, dias e anos, fazendo o coração de João Baptista oscilar como nave mal ancorada aproando ao cais de Sebastiana Princesa que não era rainha. E João Pregoeiro dirá a Sebastiana Mil Sóis, uma vez mais, que ela enche a casa de cor e alegria e semeia o ar de estrelas e que a procura porque aprecia a sua amizade e companhia embora ninguém possa prender o vento porque quando tal sucede o vento deixa de ser brisa e transforma-se em pântano, como ficava a disposição de João Baptista quando a procurava alegre, assim-assim ou nas lonas e ela lhe respondia por cima do ombro ou como quem diz: "Despacha-te, João, vê se te vens porque está na hora de eu me partir", olhando o relógio e comendo pevides por entre dois lânguidos gemidos ou três suspiros, encenados ou não, o taxímetro, marcando a hora e o serviço.

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E novamente Sebastiana Raio de Sol se rirá por detrás dos óculos escuros e disso apenas os lábios darão notícia enquanto diz "Não há meio de ganhares juízo, João, pois desta água não permitirei que tu bebas, que sou independente e livre e para a sede de outrem me reservo, mesmo que as fontes sequem e o moreno vale se transforme em deserto sufocante."

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E rir-se-á também João Baptista ao retorquir que não é ele que fala em machos e fêmeas, antes em homens e mulheres e, acima de tudo, em pessoas, e que se ela em desconversa e a despropósito Ihe diz "Desta cisterna não beberás porque para outrem me reservo" revela mau gosto e pouca amizade, sem a simplicidade de com o seu jeito de pão-pão-queijo-queijo afirmar o vero significado de "Olha para o que eu quero e não para o que em palavras e só em palavras recuso”, porque João lhe dissera apenas "Procuro-te porque gosto de ti e da tua companhia e quero a tua amizade e gentileza, porque o resto virá por acréscimo, se for tempo ou ocasião de acontecer, porque te respeito e à tua liberdade, coisa a que pelos vistos mal habituada estás."

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Ao que Sebastiana responderá "Deixa-te de paleios que os machos são todos iguais, bem os conheço desde menina, são tudo falinhas mansas e delicodocices mas depois vêm as prisões, as pressões e os bofetões e é por isso que eu te varro ao enxota moscas sape gato." E o dia cobrir-se-á de breu, pelo que João Baptista Cansado da Guerra lhe dirá "Cuida de ti, Sebastiana Mandrágora, cuida de ti e do que fazes e dizes não venha o lobo mau em noite de lobisomem e te cante o conto da sereia, pois acreditei que não fosses Maria‑Vai‑Com‑As-Outras, pondo em meu pensar que também tu amavas a liberdade e aqueles que a defendem, apesar dos seus erros, pois só não erra quem não vai à guerra,"

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E neste ponto o pregoeiro interromperá o solilóquio e dirá que isso da liberdade fia pianinho e muitas vezes os próprios inimigos da liberdade a reclamam para mais facilmente a destruírem lançada em suas masmorras profundas e solitárias. E Sebastiana Princesa soltará nova gargalhada ao dizer "Vês, vês como eu sou livre como o vento e só faço o que posso estando na prisão ou dormindo envolta em meus sonhos e devaneios?!" Pelo que João perderá a piada mais ou menos fina, murmurando que por vezes os outros nos agradam e depois buscamos racionalizar e procuramos explicações: o sorriso, os olhos, a boca, o tom da voz, o corpo sedutor e com isso tudo envolvemos a solidão e os nossos desejos mais profundos de paz e serenidade, enquanto noutras vezes a sedução e o encanto vêm aos poucos, hoje uma palavra, amanhã um gesto e por aí fora, até que a rede e o enleio se completam, com malha mais ou menos apertada.

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E aqui novamente o narrador interromperá o pregão dizendo que nada disto pensara dizer pelo que João retomará o fio a meada e dirá que já tudo foi dito e redito e que mandou chamar um ilustre retratista do reino que pintou muitas e variadas poses de Sebastiana Fio de Prata rindo, meditando, olhando, brincando ou escondida por detrás dos seus malfadados óculos escuros, com seu eterno sorriso gaiato ou trocista em seu rosto multifacetado. E esses mil retratos, paupérrimas imagens e reflexos de Sebastiana Princesa, adornavam os salões e corredores do Paço sem que alguém mais os vislumbrasse para além de João Baptista, que com mais ninguém compartilhava ou podia compartilhar o encanto e a sedução de Sebastiana Mil Sóis, a quem oferecera muitas e variadas escribaduras em torno do amor, da amizade, da sedução e também do (des)encanto, que ela guardava no fundo dum qualquer baú. E aqui Sebastiana Agridoce dirá qualquer coisa que o vento levará, abafada pela voz do pregoeiro dizendo "Cuida de ti João, cuida de ti, que há uma diferença entre descobrir e conquistar, entre a paz e a guerra, e bom seria que Sebastiana o soubesse também, pois que o vento é livre enquanto não pára e é nosso amigo quando nos acaricia o corpo e o rosto, mas destrói‑nos quando não sabemos fazer-lhe frente ou deixá-lo passar de lado.”

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E Sebastiana Mil Sóis dirá "Que bem que ele (por vezes) escreve, tal como outrora haviam dito Maria Antónia, Maria do Mar ou Maria Papoila. E João lembrar‑se‑á disso e resguardará de novo em si os gestos de amizade e ternura que a Princesa dos muitos, cálidos e ásperos nomes lhe despertara porque o encantara e lhe agradara vai para seis longas luas, uma eternidade face á brevidade da vida e á impaciência dos mortais. E caindo em si, João se lembrará que lembrará que Sebastiana Morgana o avisara que não se prendesse a ela, que era mulher esvoaçante como a borboleta que paira de flor em flor em busca do fel que agridoça a vida, sem âncora nem porto de arribação, como se João acreditasse que fosse mesmo assim, como se não fosse verdade que muitas vezes pela boca morre a pescada que antes de o ser já está presa nas mãos do pescador quando este aparece e utiliza o fio, a rede, o anzol ou o isco apropriados.

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E Sebastião Braço de Ferro encolher‑se‑á como no retrato à beira do lago e desta feita não permitirá que João a beije ou acaricie, dizendo novamente que se não quer prender nele e tem receio de se vir por aí abaixo, pois é mulher séria, embora mui sorridente, e não é Maria Embarcadiça Embarcada Em Qualquer Navio Sem Rumo Nem Destino. pelo que o pregoeiro interromperá a escribadura para dizer "Cuidem do que fazem ou dizem pois que as palavras e os gestos por vezes são como o fogo e o vento e depois de passarem o chão fica negro, gélido e salgado e entre vocês já existem demasiados equívocos, demasiados desencontros, demasiados enganos, demasiadas perplexidades que obscurecem a vossa amizade." Então Sebastiana Mandrágora tocará o corpo de João fortuita ou prolongadamente e João acordará no silêncio da madrugada e em vão procurará Sebastiana da Cor do Trigo em Flor pelo que nenhuma ave iluminará o silêncio ou libertará o murmúrio de mil candeias.

continua



quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (11)

* Victor Nogueira
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É bom
ficar pensando
em você
mas às vezes

cansa ...


... pois gosto de ti e da tua presença e companhia, mas tu andas longe e por outros caminhos em busca do sol e do mar, deixando-me na berma da estrada com as mãos vazias e um conto amarfanhado e por terminar a meio caminho de coisa nenhuma "E houve um gesto, [ um nome, ] uma palavra que se intrometeram [ e confundiram ] e burilaram os sinais, refrearam as palavras [ e as mãos ] e não houve tempo nem ocasião para que João Qualquer Coisa dissesse com simplicidade:


Gostas de mim? Queres ser minha companheira ou namorada? Mas nem João nem Joana tinham a simplicidade da gente simples, pelo que o canto ficou a meio caminho de coisa nenhuma. E não havia nem sol nem mar nem estrelas nem o murmúrio de mil candeias, nem os olhos da cor do trigo em flor eram um campo de giestas com sabor a cravo e canela [ onde as aves encontrassem a liberdade. ] E por isso por todo o lado havia um pesado, envolvente e crescente cansaço, invadindo todos os poros e o menor interstício, as palavras e os gestos esfarelando-se em negro de fumo, um areal no lugar do coração, vulgaridade quanto baste, uma gasta armadura impedindo a pirueta e o sorriso de quem lança os males por cima do ombro e prossegue a caminhada de mãos nos bolsos e assobio nos lábios, a passada larga e despreocupada, em busca de outros portos e marés onde o viajeiro pudesse finalmente descansar da guerra e sentir o ar belo e calmo e o mar verde e sereno que busca(ra)em Joana Princesa dos muitos, doces e ásperos nomes, mulher-menina, mulher-achada de mil promessas em flor fugidas."


E voltando de novo sobre si mesmo, o viajeiro perguntou: Queres ser minha amiga e ensinar-me a ser teu amigo?!


1989.12.19
Paço de Arcos

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (10)

* Victor Nogueira
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BREVE CRÓNICA DAS VENTURAS, DESVENTURAS E AVENTURAS QUE ENVOLVEM JOÃO DO MAU TROVEJAR E A SENHORA RAINHA D.URRACA DA PERDIÇÃO OU DE COMO AS APARUDÊNCIAS PODEM (DES)ILUDIR COMO SE VERÁ SE PACIÊNCIA E JEITO HOUVER.

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E a primeira aparudência, disse o contador de histórias, é mesmo esta, pois trata-se dum relato que envolve outras personagens que são o João Bimbelo também conhecido por João Baptista Cansado da Guerra e a Sedutoramente Inominável Princesa do Meio Caminho (Des)Andado Com Sabor a Cravo e Canela, da Pele Doce e Mais Repousante Que Mil Calmantes, Mais Bela e Sedutora Que Mil Sóis Para Lá das Luas. E o contador de histórias fez uma vénia ao público que enchia a praça, o barrete varrendo o chão antes de se atirar ao ar para dar cinco rápidas piruetas, até que ficou nova mente em pé prosseguindo sentado no fosso da orquestra:

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A peça que hoje ides ver conta-vos sobre dois complicadinhos, que andam por aqui às voltas, às voltas, deixando correr o tempo como a água por uma vasilha furada. E dizendo isto o nar­rador de histórias sumiu-se, dando lugar a uma cena toda imaginada.

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Ao centro, uma mesa com toalha rendada e baixela de prata, iluminada por um candelabro de mil-velas; em surdina uma envolvente e suave música. O ar estava parado, suspenso, e nem uma agulha bolia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho, ao longo dos quais (ou do qual?) se avistam dois personagens, um de passada larga e blusão atirado pelos ombros, a boca cerrada como lâmina, e outro de passinho lento, com vestes de outro tempo, oscilando entre a seriedade e o riso. De súbito, oh! céus, o ar ficou ainda mais parado quando o olhar de ambos se cruzou, tão parado que ambos levaram a mão ao respectivo pescoço exclamando em uníssono: Oh! minha (oh! meu) que é isto que me trespassa o coração, me cria esta afobação, me provoca esta sufocação, me enche de transpiração, me tira a quietação?!!!

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Inquietos e deslumbrados, os nossos personagens entraram numa dança do ora avanço eu, ora recuas tu, ora rio, ora choras, ora apareces tu, ora desapareço eu, enchendo o ar de poeira e levantamento que obscureceram a cena, não obstante a claridade do dia e a beleza da praça.

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Vai daí o narrador voltou ao proscénio com um enorme espanejador para pôr tudo nos assentos e os is nas pontas, permi­tindo o regresso da calmaria, que veio encontrar os nossos personagens sentados no chão, lado a lado ou frente a frente, as pernas cruzadas como os índios quando se sentam em círculo aspirando a fumaça do cachimbo da paz.

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Mas não havia paz pois havia demasiada gente à volta, cada um com sua faladura ou com sua ouvidura pelo que os nossos personagens voltaram à cena inicial, em busca da hora bela e serena, à volta da mesa com toalha de linho rendada e baixela de prata. E João Bimbelo acercou-se de Joana Ratinho, inebriado pelo seu perfume. João trazia em suas mãos um alaúde e Joana dedilhava a cítara que havia pertencido a Circe e Vénus, ambos entoando uma cantiga de amigo serena e calma, intitulada PORQUÊ TANTO SILÊNCIO E PALA­VRAS?, cujo mote era o seguinte:

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Se o ar é tão belo e calmo
E o mar tão verde e sereno
Porquê esconder que te amo
Seduzido girassol moreno ?

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Era uma canção bela, como belo é o canto da sereia que chama os marinheiros que ousam desbravar os caminhos do mar; era uma canção suave e delicada como delicado é o vento que acaricia o rosto dos viandantes. Era uma canção bela, porque a pergunta, era um casulo, uma crisálida que encerrava em si mil águias como borboletas esvoaçando em torno do arco íris num campo descoberto. De súbito João e Joana suspenderam o seu canto e fitaram-se como quem descobre a fragilidade do nascer do sol, porque haviam desco­berto, nas voltas por vezes ensombrantes, que eram simultaneamente amador e coisa amada.

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Deste modo foi desvendado o mistério da princesa, andado que fora o meio caminho que possibilitou que João e Joana saltassem a frági1 barreira que os separava na imensidão dos dias, enquanto a música se desenvolvia num crescendo arrebatador que polvilhava o ar de estrelas e o céu de aves onde finalmente a brisa e os regatos corriam livremente.

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Para lá do silêncio inominável de Joana, o narrador che­gou ao proscénio porque talvez não fosse ainda o tempo dos nossos personagens juntarem sua porta e panela, embora fosse esse o desejo de João. E chegando ao proscénio, narrou João que era chegado o tempo de ambos, ele e ela, se beijarem livremente, porque já era chegado o tempo de juntar a corte de cada um e de, gomo a gomo, desfolharem o cetim aveludado que os envolvia, de procurarem a sombra fulva, ardente e fresca do sol, de buscarem o sabor agridoce e almiscarado da cisterna, de traçarem em seus corpos o mapa do dese­jo, de encherem o ar com o perfume inebriante do mosto..

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E assim modo se apartaram as sombras que ensombravam o caminho e a claridade encheu o mundo na ventura da aventura por eles talhada, porque João e Joana se haviam finalmente encontrado para lá da fragilidade dos seus receios e das suas mágoas, tornando-se cavaleiro e dama um do outro.

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Deste modo havia João enviado suas mensagens à Sedutoramente Inominável Princesa e na volta soubera que também ela estava enamorada dele, que era tempo de finalmente descansarem um no outro, pondo termo a uma guerra que durava desde o seu achamento numa cur­va da estrada, quatro luas atrás.

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Por isso o viageiro pegou nas suas histórias e fechou o desencanto porque finalmente João e Joana se haviam encontrado e em si o porto e a maré que cada um deles buscara no outro, enterrando definitivamente o senhorito do Mau Trovagir e a senhora Rainha D. Urraca, personagens embirrantes sem razão de ser.

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1989.09.30

SETUBAL

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

João Baprista Cansado da Guerra (9)

* Victor Nogueira
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QUERIDO DIÁRIO SIM DIÁRIO NÃO CONFORME O SOL OU A LUA


Estou aqui no meio dos montes verdejantes do Minho e tudo isto é muito lindo, calmo e sossegado. Ontem estivemos ali sentados no quintal ouvindo os grilos e conversando à luz da lua em Quarto Minguante, o relógio da torre sineira cantando o tempo que passava. E hoje, hoje, quando acordei e me levantei, fiquei simplesmente deslumbrada com esta portentosa paisagem. Pena o dia estar nublado, limitando a linha do horizonte e a. cadeia de montanhas. A TV não fala senão no despiste e no incêndio dum camião cisterna com 27 000 litros de gasolina e gasóleo, por alturas da cidade de Santa Maria da Feira. Bem, mas deixemos estas notícias mórbidas que não ligam com este bucolismo rural e serrano.

Sou muito linda, encantadora, donairosa e simpática. Embora normalmente só escreva sobre mim e não sobre os outros, espe­cialmente quando são esses horríveis seres que não deveriam existir nem pertencer à raça humana, salvo alguma raríssima excepção. Mas, caramba, até pareço o João que não vai direito ao assunto. Pois o gajo está cada vez mais parvo e tenho pouca paciência para aturá-lo. Tem a mania de não seguir sempre, mas sempre, sem discussão, as opiniões que lhe faço a mercê de emitir. E depois é tão lento, com aquela voz arrastada e aquela maneira de um pé não dar um passo sem pedir licença ao outro!

Gosto que os homens, esses seres inferiores, me admirem e pisem o chão que piso. Mas nada de confianças. A gente dá-lhes a ponta do dedo mindinho do pé direito e depois eles trepam, tre­pam como aguardente de marufo, sempre ao mesmo. Temos de saber manter a nossa liberdade e mantê-los na ordem, se preciso com chicote, silêncio ou desprezo, para pô-los mansinhos a virem lamber a nossa mão de cauda a abanar, tal qual a Porcina fazia ao Chico Malta, naquela telenovela que dava pelo nome de Roque Santeiro. Por princípio a gente tem de ter cuidado ao dar‑lhes a mão, salvo seja, mesmo que sejam nossos amigos e digamos (mui raramente) que retribuímos a sua amizade.

Ai! mas sou tão linda, elegante e simpática! Custa-me dizê-lo, não vão pensar que sou vaidosa, querido diário. Gosto que elogiem e refiram as minhas qualidades, méritos e virtudes, mas não posso reconhecê-lo, sape‑gato. Sou ternurinhas, e também terra-a-terra porque a lua está muito longe e não tem água nem verdura. A única coisa boa da lua é não haver lá homens. Vejam lá que o parvo do João Baptista disse-me para pôr as minhas lindas e rendadas calcinhas lavadas a secar, para me não constipar. O parvo, vinha uma rabanada de vento e lá ficava eu de rego ao léu! Parvo! Parvo! Mil vezes Parvo! Então ele não sabe que lá em Luanda se dizia "Larga o osso que não é teu ...'” ou “Guardado está o bocado ..." Parvo e presumido!

Só gosto de escrever sobre mim, mas se não fossem os outros eu não existia. O papel já está a terminar e vou ter de encerrar esta tua página, querido diário. Sou tão charmosa, elegante, deslizante e bem feitinha, embora por vezes embirrante e com mau feitio, como diz o João Baptista, que no fundo até nem é mau rapaz e por vezes acerta!

Tenho mesmo de encerrar esta Página, por hoje, meu querido diário, pois o papel está mesmo no fim e quero que pensem que sou sempre não vaidosa e simples!


PRINCEZA, simplesmente

1989.08.22
SALVADOR/SERRA DO SOAJO

domingo, 16 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (8)

ESCRIBADURA SOBRE JOANA RATINHO, DITA RAPOZINHA, PRINCESA DO MEIO CAMINHO ANDADO COM SABOR A CRAVO E CANELA, DA PELE DOCE E MAIS REPOUSANTE QUE MIL CAIMANTES, MAIS BELA E SEDUTORA QUE MIL-SOIS PARA Lá DAS LUAS

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Estava João Bimbelo

Em seu jardim sentado

Quando apareceu Joana

Do seu jeito Rapozinha

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............Estava João Bimbelo em seu canto colocado quando lhe apareceu Joana, de seu jeito Rapozinha. Vimos já em pregões anteriores como dela se agradara João, ambos em suas escribadu­ras se transmutando em múltiplos personagens, um deles Joao Baptista Cansado da Guerra e o outro Princesa do Meio Caminho Andado Com Sabor A Cravo E Canela, da Pele Doce E Macia Mais Repou­sante Que Mil-Calmantes. Não era Joana Princesa e muitomenos Rainha, cheia só de excelsas qualidades e ainda maiores fortalezas.

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Todos os auditores e leitores das sete partidas do Mundo sabiam de há muito que ele se encantara da Princesa do Meio Caminho Andado Cujo Mistério Mui Breve Será Desvendado, Princesa que o era não sendo, e como lhe parecia pela leitura dos sinais ocultos que ela dele também se agradara. Mas ...

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Estava João Bimbelo

Em seu jardim assentado

Apareceu no seu zelo

Joana, ar atemorizado.

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E de ontem para hoje houve uma interrupção nas escri­baduras que ambos marcaram no papel e em linhas anteriores por­que entretanto havia ocorrido uma conversação em acentuação so­bre a escrita ao desafio em torno do redondel, uma ida à Praia das Rochinhas De Cada Um P ra Seu lado, várias saídas de aparente lado-a-lado em fila indiana por causa dos automóveis em cer­tos troços do caminho, uma ida a Vila do Conde que já seria ci­dade e um desaparecimento com reencontro na rua escura de lua cheia a caminho do quarto minguante.

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Muitas esmeraldas e estrelas de João Bimbelo haviam empalidecido com a falta de feição de Joana, pelo que não houvera passeios ao luar nem pelo areal ou à beira-mar, como nestas coisas de Príncipes e de Princesas é costume suceder.

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Continuando ambos vivos, a tudo isto seguira-se nova conversação sobre Joana em que João aparecia apenas em contraponto. Por isso, no silêncio duma nova madrugada Joao resolveu su­blinhar sozinho o que em sua escribadura ao desafio lhe parecia ser o seu próprio pão-pão-queijo-queijo. Era um sublinhar diferente do que em seus~pr6prios escritos fizera Joana, na presença de ambos, dum modo não imediatamente interpretável.

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E às 5h30m da madrugada, no intervalo da releitura dum romance de Hemingway - Fiesta, em seu original The Sun Also Rises - achou João Bimbelo essas suas linhas deveras desenxabi­das e falhas de sentido, porque da sua parte ja tudo fora dito, redito e percebido pela Joana Ratinho, também conhecida por Princesa do Meio Caminho (Des)Andado Mais Bela e Sedutora Que Mil--Sois Para Lá Das Luas que enchia a casa e o coração de ternura e alegria, com quem João gostaria de compartilhar a vida.

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A qual Joana Princesa, apesar dos entrevistos defeitos, seria sempre recordada como bem que valera a pena qualquer que fosse o seguimento, enquanto persistissem os “seus” escritos e a memória do seu significado e das quadras e dos versos surgidos no tempo em que abalara com a promessa de regresso, quadras e versos que Joana ensinara João a escrever com outras re gras, em jeito mais popular e leve.

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Muitas coisas, tempos e também lembranças bonitas não podia João deixar de desejar a Joana, que não poucas expressões e sentimentos poéticos lhe fizera nascer em seu pensamento e de lhes dar noticia nas suas escribaduras. Coisas, tempos e lembranças bonitas em todo o Mundo, incluindo ambos. Com eles, qualquer que fosse a volta, ficariam seguramente outros, novos ou diferentes escritos e a memória do tempo em que estiveram juntos na Praia das Rochinhas e arredores e dos gestos que (não) haviam trocado entre si.

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De verdade ela o seduzira e lhe agradara e dela queria veramente ser amigo, para lá dos desentendimentos e de algumas mu tuas faltas de propósito

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E com um aceno resolveu João Baptista Cansado da Guer­ra dois escritos seus que, modéstia à parte, lhe pareciam boni­tos: Historias do Sol Arrancado Antes de Nascer” e, sobretudo, "Nunca Digas Nunca Porque o Sempre Não Existe".

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Com este aceno pôs João em seu intento que talvez fosse se chegado o tempo de partir em demanda de novos portos e marés, com a esperança e o desejo de que a Princesa o chamasse e deti­vesse, enchendo com a sua presença e alegria o coração e a casa de João Baptista Finalmente Descansado da Guerra.

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1998.08.18/19

Mindelo

06:00 horas