sábado, 8 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (1)

* Victor Nogueira


HISTORIAS DO JOÂO BIMBELO OU DO SOL ARRANCADO ANTES DE NASCER

Vivia João Bimbelo na Quinta de Todos Nós, rodeado de papéis e do silêncio dos gestos e das palavras contundentes quando encontrou a Maria do Mar e dela se agradou num dia de Verão. Tudo teria ficado apenas por aqui, com o sabor das coisas que se não experimentaram ou conheceram, se as voltas do tempo os não tivessem cruzado novamente ao virar duma estação, quando as árvores se vestem de amarelo e dei­xam cada vez mais entrever os dias ainda luminosos e levemente cálidos. De novo se encontraram pois a Maria do Mar e o João Bimbelo e deram grandes passeios nas noites sem luar percorrendo o areal e tecendo os fios do que parecia vir a ser uma amizade diferente.

Mas tudo não seria mais que isso, com o sabor simples da amizade e da camaradagem, se o dobar dos tempos os não tivesse cruzado novamente ao voltar duma nova estação, quando o ar está frio e o céu cinzento e chuvoso. Ainda não sabia João Bimbelo que flores germinariam naqueles dias descoloridos e vazios de calor mas, quaisquer que elas fossem, parecia-lhe que seriam únicas, inestimáveis e delicadas como a porcelana rendilhada.

Na quinta de Todos Nós não era livre João Bimbelo e foi com a mágoa dos gestos resguardados que ele deixou a Maria do Mar, voltando ao lugar donde partira, prosseguindo a sua peregrinação, envolto como estava na guerra com os Dragões da Mãozinha Misteriosa, que não poderia perder porque era o futuro do dia-a-dia que estava em jogo.

E, no intervalo das batalhas com os Dragões da Má Vida, procurou de novo a Maria do Mar e nela encontrou abrigo e, pensava, tudo aquilo que é tão simples e simultaneamente grandioso: os dias cheios de alegria e ternura que, dum modo silen­cioso e cativante, entrelaçavam os seus gestos. O futuro parecia surgir ali ao alcance da mão, apesar das sombras que se projectavam sobre a Maria do Mar, que lhe surgia demasiado frágil.

Tão frágil que as palavras os separavam, cada vez mais preso João Bimbelo ao peso das pontes que entre eles desapareciam e a Maria do Mar ao sentido das palavras que não entendia do mesmo modo.

Era João Bimbelo homem duma só cara e dum só viver e custava-lhe sobremaneira o distanciamento da Maria do Mar, que assim desmentia a veracidade e forta­leza das suas palavras de amizade eterna, quaisquer que fossem o tempo e o lugar. Duro era também o esboroar de algo em que acreditara, como planta frágil e valiosa, que deste modo se perdia com o peso crescente dos enganos que não quisera cometer. E as janelas da Maria do Mar fecharam-se e de novo se encontrou João Bimbelo no mar alto sem porto nem maré, com o norte que a sua fragilidade lhe indicara, ensombrado pela inesperada indelicadeza da Maria do Mar, apesar de entrecortada por gestos aveludados de amizade e ternura.

Muitas vezes procurou João Bimbelo reencontrar o que perdido parecia estar, devido aos silêncios, as histórias e sombras que mascaravam a expressão dos sentimentos que a Maria do Mar nutria pelo João Bimbelo histórias que lhe pareciam inventadas por ela, presa aos fantasmas da sua vida passada e das mulheres com vida e pensar semelhantes ao seu. Como desde o primeiro instante parecia a João Bimbelo que era com a Maria do Mar que estava o futuro assim como os dias luminosos e as noites estreladas. No entanto tratava-se dum puro engano porque sendo agora "ambos' livres, cada vez menos se cruzavam os caminhos da Maria do Mar e do João Bimbelo, pois cada vez mais historias e silêncios envolviam a Maria do Mar, deixando o nosso peronagem cada vez mais inquieto na busca vã da chave no tempo e no espaço que os se­paravam cada vez mais.

Encontrava-se João Bímbelo de mãos vazias e sem jeito; perdidos cada vez mais estavam o esplendor dos longos passeios ao luar ou o encanto da voz, da presença e da paz que haviam preenchido os dias cinzentos de outrora, pois ninguém em seu e perfeito juízo gosta de ser escorraçado, mesmo que seja dia não semana sim.

No entanto, fazendo jus ao seu nome, pensava João Bimbelo que ainda valia a pena lutar pela Maria do Mar e por isso a procurou de novo, após um longo silencio, porque a ela dera o seu afecto, porque ela o seduzira e conquistara. Mas novos con­tos e novelas surgiram ligados a novos enredos e pareceu ao nosso “herói” que era tempo de dar descanso à parede sob risco dela começar a ficar pintalgada de vermelho mais ou menos vivo e coberta a sua moleirinha de galos que o acordariam estremunhado todos os dias ao romper da bela aurora e o fariam andar bêbado de sono pelas ruas e pelos escaninhos da cidade

Tudo estava dito e redito entre o João Bimbelo e a Maria do Mar, que prosseguiam as suas vidas, cada um para seu lado. Para trás , cada vez mais para trás , ficavam o afecto e amizade que cada um deles procurara no outro, que ela rejeitava por razões que lhe escapavam completamente, Pois parecia a João Bimbelo que o amor e a amizade se constróem de coisas que estavam cada vez mais ausentes deles: a confiança, o encontrar da paz no murmúrio frágil e pleno do afecto, o saber que outrém está ali, ao alcance da mão, do gesto e da voz , qualquer que seja ou fosse o tempo. Parecia a João Bimbelo que o amor e amizade se não encontram ao virar da esquina e ao alcance dos pontapés e que por isso, quando há novas do seu achamento, como apregoara a Maria do Mar, se devem protegê-los como quem protege a chama do fósforo com que se acende a candeia ou a luzerna.

E porque lhe parecia que assim não sucedera, resolveu João Bimbelo prosseguir a sua caminhada em busca de outros portos e marés, de amizades feitas de portas que se não fecham e de janelas abertas e rasgadas ao sol e ao luar, como sempre o encontraria a Maria do Mar, qualquer que fossem o tempo e o lugar em que vivessem e o procurasse.

Paço de Arcos 1989.04.01 (Setúbal 1989.06.30)

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