terça-feira, 18 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (10)

* Victor Nogueira
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BREVE CRÓNICA DAS VENTURAS, DESVENTURAS E AVENTURAS QUE ENVOLVEM JOÃO DO MAU TROVEJAR E A SENHORA RAINHA D.URRACA DA PERDIÇÃO OU DE COMO AS APARUDÊNCIAS PODEM (DES)ILUDIR COMO SE VERÁ SE PACIÊNCIA E JEITO HOUVER.

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E a primeira aparudência, disse o contador de histórias, é mesmo esta, pois trata-se dum relato que envolve outras personagens que são o João Bimbelo também conhecido por João Baptista Cansado da Guerra e a Sedutoramente Inominável Princesa do Meio Caminho (Des)Andado Com Sabor a Cravo e Canela, da Pele Doce e Mais Repousante Que Mil Calmantes, Mais Bela e Sedutora Que Mil Sóis Para Lá das Luas. E o contador de histórias fez uma vénia ao público que enchia a praça, o barrete varrendo o chão antes de se atirar ao ar para dar cinco rápidas piruetas, até que ficou nova mente em pé prosseguindo sentado no fosso da orquestra:

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A peça que hoje ides ver conta-vos sobre dois complicadinhos, que andam por aqui às voltas, às voltas, deixando correr o tempo como a água por uma vasilha furada. E dizendo isto o nar­rador de histórias sumiu-se, dando lugar a uma cena toda imaginada.

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Ao centro, uma mesa com toalha rendada e baixela de prata, iluminada por um candelabro de mil-velas; em surdina uma envolvente e suave música. O ar estava parado, suspenso, e nem uma agulha bolia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho, ao longo dos quais (ou do qual?) se avistam dois personagens, um de passada larga e blusão atirado pelos ombros, a boca cerrada como lâmina, e outro de passinho lento, com vestes de outro tempo, oscilando entre a seriedade e o riso. De súbito, oh! céus, o ar ficou ainda mais parado quando o olhar de ambos se cruzou, tão parado que ambos levaram a mão ao respectivo pescoço exclamando em uníssono: Oh! minha (oh! meu) que é isto que me trespassa o coração, me cria esta afobação, me provoca esta sufocação, me enche de transpiração, me tira a quietação?!!!

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Inquietos e deslumbrados, os nossos personagens entraram numa dança do ora avanço eu, ora recuas tu, ora rio, ora choras, ora apareces tu, ora desapareço eu, enchendo o ar de poeira e levantamento que obscureceram a cena, não obstante a claridade do dia e a beleza da praça.

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Vai daí o narrador voltou ao proscénio com um enorme espanejador para pôr tudo nos assentos e os is nas pontas, permi­tindo o regresso da calmaria, que veio encontrar os nossos personagens sentados no chão, lado a lado ou frente a frente, as pernas cruzadas como os índios quando se sentam em círculo aspirando a fumaça do cachimbo da paz.

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Mas não havia paz pois havia demasiada gente à volta, cada um com sua faladura ou com sua ouvidura pelo que os nossos personagens voltaram à cena inicial, em busca da hora bela e serena, à volta da mesa com toalha de linho rendada e baixela de prata. E João Bimbelo acercou-se de Joana Ratinho, inebriado pelo seu perfume. João trazia em suas mãos um alaúde e Joana dedilhava a cítara que havia pertencido a Circe e Vénus, ambos entoando uma cantiga de amigo serena e calma, intitulada PORQUÊ TANTO SILÊNCIO E PALA­VRAS?, cujo mote era o seguinte:

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Se o ar é tão belo e calmo
E o mar tão verde e sereno
Porquê esconder que te amo
Seduzido girassol moreno ?

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Era uma canção bela, como belo é o canto da sereia que chama os marinheiros que ousam desbravar os caminhos do mar; era uma canção suave e delicada como delicado é o vento que acaricia o rosto dos viandantes. Era uma canção bela, porque a pergunta, era um casulo, uma crisálida que encerrava em si mil águias como borboletas esvoaçando em torno do arco íris num campo descoberto. De súbito João e Joana suspenderam o seu canto e fitaram-se como quem descobre a fragilidade do nascer do sol, porque haviam desco­berto, nas voltas por vezes ensombrantes, que eram simultaneamente amador e coisa amada.

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Deste modo foi desvendado o mistério da princesa, andado que fora o meio caminho que possibilitou que João e Joana saltassem a frági1 barreira que os separava na imensidão dos dias, enquanto a música se desenvolvia num crescendo arrebatador que polvilhava o ar de estrelas e o céu de aves onde finalmente a brisa e os regatos corriam livremente.

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Para lá do silêncio inominável de Joana, o narrador che­gou ao proscénio porque talvez não fosse ainda o tempo dos nossos personagens juntarem sua porta e panela, embora fosse esse o desejo de João. E chegando ao proscénio, narrou João que era chegado o tempo de ambos, ele e ela, se beijarem livremente, porque já era chegado o tempo de juntar a corte de cada um e de, gomo a gomo, desfolharem o cetim aveludado que os envolvia, de procurarem a sombra fulva, ardente e fresca do sol, de buscarem o sabor agridoce e almiscarado da cisterna, de traçarem em seus corpos o mapa do dese­jo, de encherem o ar com o perfume inebriante do mosto..

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E assim modo se apartaram as sombras que ensombravam o caminho e a claridade encheu o mundo na ventura da aventura por eles talhada, porque João e Joana se haviam finalmente encontrado para lá da fragilidade dos seus receios e das suas mágoas, tornando-se cavaleiro e dama um do outro.

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Deste modo havia João enviado suas mensagens à Sedutoramente Inominável Princesa e na volta soubera que também ela estava enamorada dele, que era tempo de finalmente descansarem um no outro, pondo termo a uma guerra que durava desde o seu achamento numa cur­va da estrada, quatro luas atrás.

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Por isso o viageiro pegou nas suas histórias e fechou o desencanto porque finalmente João e Joana se haviam encontrado e em si o porto e a maré que cada um deles buscara no outro, enterrando definitivamente o senhorito do Mau Trovagir e a senhora Rainha D. Urraca, personagens embirrantes sem razão de ser.

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1989.09.30

SETUBAL

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