sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

João Baptista Cansado da Guerra (12.2/2)

* Victor Nogueira
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continuação
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Vês, João, vês como és indiscreto no que escreves sem cuidar de mim, sem cuidar que há mil olhos e mil ouvidos e dez mil bocas em nosso redor ?”, pelo que João Baptista descansará na doce, fresca e apetecida pele com sabor a cravo e canela e lhe dirá "Sê simples, Sebastiana, sê simples e não digas desta água não beberás porque eu não quero e se não queres, então cala-te, e se queres não brinques com o fogo e o vento que tudo destroem ou ajudam à vida conforme o uso que deles fizermos e a sabedoria que em nós houver. Porque as tuas palavras negam o que o teu hábito provoca, os teus gestos renegam o que o teu corpo pede e a tua voz e o teu olhar denunciam, haja ou não sinceridade e/ou descuido da tua parte", ao que Sebastiana Pé Ligeiro e Força Nas Canelas responderá "Passado foi o tempo em que tal sucedeu porque tu não me entendes(te) nem eu a ti e por isso hoje sou mais resguardada perante ti,"

E neste ponto o narrador olhará para o relógio na praça pública dizendo para consigo "Bolas, já são sete e trinta da tarde e ainda não parou de chover nem Sebastiana apareceu; lá se lixou o jantar mais a bela companhia e a doce conversação e novamente não há novas nem mandados." Se fosse noutro tempo João preocupar-se-ia mas hoje apenas encolhe os ombros dizendo com certo amargo de boca "Como se pode exigir ou pedir ao vento que seja o sol e o mar, quando esse vento é apenas vendaval que levanta alterosas ondas ou tempestades de areia, que tudo varrem na ânsia incontida das palavras e dos gestos equívocos ou sem sentido? Como pode o cego dar vista ao cego ou o mudo falar com o cego?!."

E o contador de histórias dirá "Basta, João, basta, que vais a reboque das palavras apenas por que uma certa Sebastiana Raposinha te entrou pela casa dentro enchendo-a de cor e alegria e que por isso pensaste que nela encontrarias amizade e com ela paz e serenidade, que o resto viria por acréscimo se e quando fosse tempo ou oportunidade de acontecer. Mas vós ambos sois duas crianças sem sabedoria nem paciência, sem que se conheça bem qual de vós é pior aprendiz de feiticeiro." E deste modo um envolvente e pesado cansaço entrará dentro de João Bimbelo, invadindo todos os poros e o menor interstício, as palavras e os gestos esfarelando-se em negro de chumbo, um areal no lugar do coração, vulgaridade quanto baste, uma gasta armadura impedindo a pirueta e o sorriso de quem lança os males por cima do ombro e prossegue a caminhada de mãos nos bolsos e assobio nos lábios, a passada larga e despreocupada, em busca de outros portos e marés onde finalmente João Baptista possa ser Descansado da Guerra.

E novamente o narrador se intrometerá "Chega, porque se ambos sois amigos então acabai com a guerra das palavras equívocas e dos gestos com muitas leituras para o mesmo desejo e olhai para além do vosso umbigo, pelo que João encerrará a escribadura porque é necessário cozinhar o jantar, necessidade prosaica pese embora a sua vitalidade essencial. Mas antes dirá “Cuida de ti Sebastiana Mandrágora, pois os homens não são todos iguais, porque sendo assim também o são as mulheres e então tu serás na voz do povo e das comadres falsa, fingida, vendida, pronta a trazeres os homens pela arreata nesta vida onde se cruzam os jogos de poder que terminam na prisão de alguém e lá se acabam a tua diferença e o teu amor à liberdade!" E Sebastiana Mosqueta Rosada responderá com o seu riso de menina gaiata que nunca se sabe quando é maldosamente trocista ou simplesmente brincalhão e lançará novamente João às lonas dizendo "Olha por ti, João, olha por ti que és demasiado transparente em determinadas situações e demasiado racionalista e pouco terra-a-terra, levando as coisas muito a sério e tudo queres entender com os olhos da razão embora tu também brinques e por vezes digas piadas", pelo que o narrador em vão se intrometerá porque as palavras são como as cerejas, atrás de umas outras vêm, impedindo o encerramento das escribaduras e oralduras, transtornando deste modo a melhor narradura assim descarrilada.

"É como dizes, pregoeiro, é como dizes, e eu João Bimbelo o sei com um saber de experiência feito, pois esta mulher entrou-me pela casa dentro e libertou mil crianças dentro de mim que sentiram o veludo da sua pele morena, tão fresca e suavizante e por isso lhe disse gosto de ti, de falar contigo, de estar contigo, gosto da tua companhia, de ver-te na minha casa como peixe na água, de sentir o teu corpo junto ao meu. E pedi-lhe a sua amizade, mas ela deixou-me demasiadas vezes a falar sozinho e não Ihe vi ainda gestos de amizade e ternura antes palavras vãs acerca da minha "individualidade" e da minha paciência, como se os "amigos" fossem elásticos onde descarregamos as nossas macacoas e pedradas e por isso, quando penso nela, não encontro nem o sol nem o mar nem estrelas nem crianças correndo dentro de mim; quando penso nela encontro apenas um enorme e opressivo silêncio, uma garra no lugar do coração. E no entanto, Sebastiana, quantas vezes me provocaste, quantas vezes julguei ler em ti sinais escondidos que me levaram a crer que poderias estar enamorada de mim e que te resguardarias com as tuas fugas e as tuas palavras agrestes ou por cima dos ombros? E pergunto ao tempo que passa porque te procuro ainda, Sebastiana Pé Ligeiro e Força nas Canelas, quando há tantas Marias na terra, e porque continuo aprisionado do que resguardado ou inexistente é, porque continuo preso a uma Sebastiana Mil-Sóis que uma noite me entrou pela casa enchendo o ar de poalha dourada e nela julguei encontrar uma mulher de quem valia a pena ser amigo?”

E João dirá para com os seus botões que a procura, é verdade, talvez demasiadas vezes, embora não seja cãozinho levado pela arreata, procurando a dona que o maltrata, ao que o narrador acrescentará que ele a procura porque gostaria de ser amigo dela, porque a respeita e considera, porque se preocupa com ela, porque Sebastiana Morgana é importante para ele e porque, sabendo ela disso, o magoa porque o atende por vezes com um jeito displicente, desprendido e frio, como se o estivesse a pôr com dono ou a armar-se em pessoa importante e distante, especialmente quando há terceiros presentes. E João dirá “É uma pecha dela, embora eu pense que talvez o não faça por leviandade ou ligeireza, mas sim por falta de atenção ou apenas porque se fecha por estar demasiado maltratada (ou mimada?) e com receio de exteriorizar os seus sentimentos e o seu pensar, por autodefesa ou porque está ansiosa, preocupada ou com a pedrada. Ao que Sebastiana, subitamente séria, dirá "É como dizes" e mais nenhuma palavra sairá da sua boca, embora pense para consigo o pensamento que esconde por detrás das palavras ásperas ou desprendidas, quando não se descuida e no tom de voz transparece o jeito de quem está enamorada, de quem é menina em momento de fraqueza e carece de quem a respeite e acarinhe, embora João Baptista esteja seco dos seus xutos e pontapés e nada lhe permita concluir que não está errado nas suas leituras.

E por algumas vezes o sol apareceu no horizonte para lá desta janela e se pôs para lá da parede que lhe está defronte e muita água caiu das nuvens e chegou ao rio, enchendo a cidade de lama e areia, encoberta por um céu de chumbo debaixo do qual inúmeras aves têm voos rasteiros de pardal, como se fossem gaivotas m terra. E João Baptista lerá tudo isto e um filme de pedaços esparsos perpassará pela sua mente e pensará como as palavras enganam e os gestos iludem se não tivermos a chave certa que nos dê o sentido oculto e verdadeiro da vida e dos acontecimentos.

E João está sozinho, embora lá do fundo venha o ruído da televisão ligada que outros vêm, impedindo que ponha a música em crescendo que o envolva e pacifique, Vivaldi, Bach ou Mozart, sobretudo, ou mesmo as valsas vienenses. Está pois João sozinho, com um peso no lugar da alma, um aperto no lugar do coração, o corpo como se fora um monte de roupa em rodilha ou largada ali no chão, antes de ir para a máquina, cesto de roupa suja, melhor diria, usada ou gasta. Imagens velhas que renascem periodicamente. "Porquê, Sebastiana, me sinto por vezes tão sozinho, tão vulnerável, tão desolado, tão dependente dos outros, de ti, por exemplo, que penetraste na minha vida como a raiz entrando pela muralha deste modo esfarelada e desagregada, sem que se conheça bem onde acaba a pedra e começa o tronco velho e carcomido?" E Sebastiana Raio de Sol dirá "Não é assim que te quero, frágil e vulnerável, mas sim macho forte e duro que me cerre os cabelos esvoaçantes como o vento em cujas ondas navego sem porto nem maré.”

E João Bimbelo rir-se-á de si mesmo e da vida e de tudo, com um riso radiante que no entanto deixa mil traços negros dentro de si e lembrar-se-á de como são diferentes os sinais e as palavras, de como lhe parecera tímida a primeira e segunda vezes que a vira, de como lhe parecera uma pessoa sensível, culta, serena, inteligente e atenciosa, de como lhe parecera uma pessoa adulta apesar da juventude do rosto e da alma!

De repente João olha para a vidraça e verá para lá dela o negrume da noite e um caminho de luzes e, como se fora num espelho de breu, o reflexo esmaecido e vago da sua imagem à mesa, sentado no silêncio da madrugada, entrecortado apenas pelo escape livre e agressivo das motorizadas e pelo velho matraquear da lenta máquina registadora do seu pensamento demasiado rápido, deste modo disperso por outros caminhos e atalhos.

E Sebastiana Princesa perguntará “De que te ris, João, de que te ris se estavas com um ar tão sério e tão meditativo, porque mudaste de repente?" Então João rir-se-á novamente e dir-lhe-á "Porque se escondem tanto as pessoas? Porque te resguardas tanto?"

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E muitas vezes o sol, cada vez mais alto, apareceu para lá do horizonte e se pôs defronte, sucedendo-se os dias e as noites com muitas e variadas feições, sem que o escribador passasse para alem da página defronte dos olhos, muitas vezes escrita e retomada e amarfanhada. E passaram o Natal e o Ano Novo e também o Carnaval a caminho da Páscoa e as linhas por lá ficaram no fundo da pasta ou no bolso do casaco e poucos foram os escritos que nesse tempo surgiram e grandes os navegares sem porto nem maré, perdida a colorida janelinha.

Porque Sebastiana Mandrágora, Princesa dos Mil Sóis Em Pedra Dura, não passava de mulher com jeito de menina em permanente crise adolescente, em atitude e pose de quem gratuitamente pretende escandalizar ou afrontar o mundo, malbaratando a sua energia e encanto em tiradas de afirmação estéril.

E de tudo, para João Bimbelo Que Não Era Príncipe, ficará um travo amargo com sabor de areia, pouco interessando falar da amizade que se procurou como um bem frágil e precioso ou do céu coberto de poalha luminosa ou das noites cheias de sol e mar. Para quê pois continuar pensando em Sebastiana Balde de Água Fria ou recordar o seu canto ou a sua voz cativante? Para quê lembrar a macieza da sua pele morena ou a sua maneira de sedutora querendo ser seduzida, como no retrato à beira do lago? Tudo pertencia ao mundo das ilusões; tudo se perdera e já não interessava procurar a meada e a raiz dos (des)encontros para reencontrar o passado e nele o regresso ao futuro, nem falar da primeira e da Segunda vezes em que a vira nem dos tempos em que a esperara e ela aparecera, nem da "descoberta" dos sonetos de Shakespeare, nem da alegria pela sua presença no casarão de João Baptista, nem do seu jeito alegre e brincalhão, nem das jornadas de povoado em povoado ou à Praia da Liberdade Aprisionada, ou das vezes em que se sentara no chão ao seu lado ou repousara nele.

E João Que Não Chegara a Príncipe dirá que a felicidade não tem história e que todo o tempo é escasso para vivê-la e saboreá-la, acrescentando que a vida é feita de sonho (e também de mudança, como diria o poeta), embora vivido com os pés na terra, e que a vida é sempre feita de novos amanhãs, como dissera uma certa Maria Papoila Vai Com As Outras, embora fique sempre a mágoa ou a nostalgia dos sonhos que se sonharam e não viveram, do sol arrancado antes de florir.

Os sonhos que se não viveram pertencem ao mundo das ilusões e das sombras, dirá o narrador, e de tudo fica um pesado silêncio enchendo o ar e penetrando como breu em todos os poros e em todos os interstícios, bem temperado com um crescente desânimo para lá da viseira, juntando-se a outros pesos, fazendo surgir a pergunta se valera a pena encontrar e “conhecer” Sebastiana Maria da Pele Doce e Morena, que inspirara tantos bonitos textos que recebera com aparente agrado e lisonja e guardava num qualquer dossier, não se sabe bem porquê nem para quê.

E na recta final se mudou o discurso, sem boniteza, que não transparecia nestas linhas finais para encerrar com ponto mal alinhavado o solilóquio em torno de Sebastiana Princesa, dos Muitos, Cálidos e Ásperos Nomes.

Como quem arremata para que o tecido se não esfie e desfaça, levado pelo vendaval!

E retirando-se o narrador, foi encerrada a escribadura, no palco abandonado renascendo o silêncio em mar de aparente calmaria.
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1989.12 e 1990.03.13/16SETUBAL E PAÇO DE ARCOS

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