terça-feira, 2 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (26)

* Victor Nogueira
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Afinal ontem, 5ª feira, acabei por não ir à reunião sindical em Lisboa; o tempo estava chuvoso e mau para os meus inflamados gorgomilhos. E depois, perante a crónica indisponibilidade dum dos carros do sindicato, decidi não levar o meu velho R5. Coitado do senhor Rui, o electricista-auto, que foi trabalhar na manhã do feriado municipal, contra a minha opinião, para mo entregar a tempo, para eu não faltar à dita reunião.
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Mas hoje é que choveu mesmo, aumentando a minha rouquidão. Que linda despedida o Verão nos tem dado nesta arrancada final para o Outono! Ali a avenida Bento Jesus Caraça parecia um rio caudaloso e lamacento, com água pelo passeio, devido aos boeiros entupidos. Felizmente que me precavera previamente com as botas pelo que não precisei de andar com bote!
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Aproveitei a pasmaceira do serviço para terminar a organização dos negativos fotográficos e a relação das cópias a efectuar. Para além disso continuei a ler o manual de instruções e a praticar numa máquina de dactilografia eléctrica, que ainda não domino completamente. É mais complicada do que a que eu tinha no serviço e que desapareceu misteriosamente do meu armário e do edifício no verão do ano passado. Um dia destes quis escrever na da Fátima, mas apesar das breves explicações dela e do Carapeto, não dei conta do recado, pois não é á primeira que se dominam as funções todas, pelo que desisti e limitei-me a enviar á Maria do Mar um postal com vista para o Estuário do Sado e Península de Tróia.
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O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais. Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.
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O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura!
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Ontem, que já é anteontem, a Maria do Mar falou sobre a felicidade em contraponto a uma pretensa atitude de infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do modo que eu preferiria. Diferente da infelicidade é o desencanto pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos de alegria e serenidade. Alguns deles com ela, apesar de tudo. E talvez parvamente e sem razão eu persiga nela a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível ter sido (ser) feliz com ela, como amigo ou como amador e ser amado. Mas isto só teria resposta se outra fosse a nossa relação. A isso, só a convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.
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Apesar de tudo acredito que é possível as pessoas serem felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os homens e as mulheres não foram feitos para estarem sózinhos ou viverem solitáriamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la.
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.Todos temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo. Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou levantamos á nossa volta.
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Quando estudante de Economia em Lisboa, tinha então vinte anos, frequentei um curso intensivo de inglês. A professora, uma jovem inglesa, a Maureen Baltazar, era alegre, encantadora e todos nós gostávamos muito dela. Mas entretanto ela resolveu regressar a Inglaterra, já não me lembro se por se ter entretanto separado do marido português. E o surpreendente para mim era o desgosto e a ideia expressa nas palavras duma das empregadas da escola pelo facto da Maureen abalar, creio que definitivamente, dizendo que mais valia não a ter conhecido porque assim não teria o desgosto de perdê-la. E surpreendia-me esta atitude, pelo que então lhe contrapuz que o que era importante era termos conhecido e convivido com a Maureen, porque a recordaríamos sempre com alegria e ao tempo em que tínhamos estado com ela, porque era um tempo que tinha valido a pena ter sido vivido!
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Setúbal, 1993.09.16/19

2 comentários:

De Amor e de Terra disse...

Creio que já uma vez "falamos" desta professorinha; por tal motivo, o meu comentário será mais ou menos o mesmo...
Quanto a mim, é preferível ter vivido algum tempo com ela, ser iluminado pela luz que ela tinha (ou tem) e perdê-la, já que tudo na vida tem um fim, do que a não ter conhecido!
Ao menos tiveste-a (tiveram-na) contigo (convosco) durante algum tempo e foi bom, porque durante esse tempo pôde dar-te(vos) um pouco da sua luz e ficar no vosso coração!

Maria Mamede

Belisa disse...

Olá :)

Uma página da vida que nos dá alegria ao ler e já agora.. os "gorgomilhos" são as amígdalas?...por causa da rouquidão, de repente pensei nos "pés".

Beijos estrelados