segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (31)

* Victor Nogueira
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Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sozinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal.
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De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda os vedantes metálicos para as janelas.
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A Maria do Mar já deve ter recebido as duas fotografias que lhe mandei, embora não me tenha dito qual a sua opinião acerca das mesmas e se escolheu alguma delas para o seu porta-retratos. Hoje enviei-lhe as que lhe tirei na sua bonita sala, embora tenham ficado escuras. Comprei umas molduras grandes para decorar as paredes com as ampliações das minhas melhores fotografias, mas depois quando as fui seleccionar não me agradou nenhuma delas. De resto cada vez gosto menos da minha casa, embora seja nela que passe muito tempo, quando não ando na rua ou por aí.
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Antigamente, aos fins-de-semana, ia até à Serra da Arrábida ou até ao morro de S. Filipe ou para a Estrada da Comenda, o carro debaixo da sombra duma árvore para ler o jornal e para ouvir música. Mas agora fico-me pelo descampado no cimo das escarpas de S. Nicolau, onde as árvores ainda não cresceram e para onde agora vão muitos carros, demasiados para o meu gosto. Aliás cada vez mais a cidade está sendo separada do rio, por causa do aumento do Porto de Setúbal, e cada vez mais nos arredores as casas substituem as árvores ou o arame farpado impede o acesso aos campos.
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E nas minhas longas e solitárias noites leio, vejo filmes ou estou agarrado ao computador, quando não ao telefone. Deito-me sempre muito tarde, entre as 2 e as 5, e depois o tempo para dormir é pouco, pois levanto-me entre as 8 e as 9. Vantagens de morar a escassos metros do local de trabalho e de ter horário flexível. Há dias em que ando bêbedo de sono, mas á noite é que faço algumas das coisas que me dão prazer (ler, escrever, conversar, ver cinema, aprender coisas novas), que normalmente não faço durante o dia, dividido que estou, muitas vezes sem prazer, entre a actividade sindical e o trabalho na Câmara.
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Aliás cada vez mais me custa ir para a Câmara, onde me dou bem com toda a gente. Mas de qualquer modo já nos conhecemos a todos uns aos outros: as conversas, as reacções e os tiques de cada um. Depois, no meio disto tudo, há os filho(a)s da mãe, que sorriem mas pela calada espetam o dente e o punhal afiados.
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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas, onde continuo a ir com a Arqª. Arminda ou com a Arqª. Nina e onde vai o pessoal da Secretaria. E isto para não falar das chefias, que já deixaram de se misturar com o maralhal.
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Nunca gostei de ser professor, mas era uma profissão com algumas vantagens: havia sempre caras novas (alunos e professores) e havia tempos livres para andar na rua, nas horas em que o resto da malta estava atrás dum balcão, sentado a uma secretária ou preso na oficina.
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Desde há pouco que comecei a sentir o frio a entrar-me nos ossos; olho pela janela e reparo que é já noite; defronte a mim o relógio diz-me que são quase 20 horas.
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Bem, vou fazer para ali uma mistela para comer. Depois acabarei de ver um filme policial que gravei esta madrugada. (Um outro, do Jerry Lewis, que não aprecio muito e me causa um certo constrangimento, ficou sem o final, devido ao incumprimento de horários pela televisão).
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Nas minhas idas a Lisboa, acabadas as reuniões, vou até ao cinema. Gosto de ir às sessões do fim de tarde. Duma das últimas vezes gostei muito da Idade da Inocência: um filme muito bonitinho, de Martin Scorcese, mas duma extrema violência, passado na alta sociedade nova iorquina da passagem do século. Sob o manto diáfano das boas maneiras e dos sorrisos, a extrema violência da hipocrisia e das convenções sociais, da escolha da segurança e do bem-estar em detrimento da loucura do amor e da paixão.
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Outro filme que vi foi M.Butterfly. A Madame Butterfly é uma ópera que canta os amores dum ocidental por uma japonesa, que se suicida quando aquele a abandona, comoventemente para o público ocidental. Com base nisso, o filme narra a paixão (verídica) dum diplomata francês pela intérprete de M.Butterfly no Teatro de Pequim. E o que parecia uma grande paixão, iniciada na China e prosseguida em Paris, anos mais tarde, não passaria duma sórdida história da paixão e degradação dum homem apaixonado por outro homem, ambos presos e condenados por espionagem.
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Claro que uma leitura linear pode levar-nos a perguntar como pode um diplomata desconhecer que na China os papéis femininos eram interpretados por homens (como aliás na Europa, nos tempos de Shakespeare ou de Gil Vicente) ou como pode um homem manter uma relação amorosa com uma mulher (afinal homem) que simula uma gravidez ( que implica a existência de relações sexuais ) sem que alguma vez durante anos o suspeite? (Aliás caso semelhante teria acontecido em Portugal com a história da generala). Mas é o próprio francês que nos dá a resposta, quando afirma que se apaixonou não por um homem, mas sim por uma mulher criada por um homem (e quem melhor que um homem pode saber o que um homem pretende duma mulher, perguntar-se-á? Ou, na mesma ordem de ideias quem melhor que uma mulher para saber o que uma mulher espera de um homem? ). E no fim é o francês que se suicida, num acto teatral, travestido de Madame Buterfly, enquanto o espião chinês é deportado para a China).
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Afinal todo o amor (ou a paixão?) não será senão uma encenação, uma ilusão dos sentidos, uma elaboração mental, uma construção ( social ? ) que em certa medida a sabedoria popular expressa em ditos do género O amor é cego ou Quem o feio ama, bonito lhe parece ?! O que me levaria ao programa do Júlio Machado Vaz, Sexualidades, que já não via há muito tempo, ontem dedicado ao namoro e ao casamento ou ajuntamento, ao (des)conhecimento das pessoas, aos papeis masculinos e femininos, com filhos, filhas e algumas mães e nenhum pai. Por sinal todas as mães presentes (nenhuma divorciada ou solteira) com ausentes mas compreensivos maridos. É impressionante como a maioria dos homens e das mulheres (esposas e mães incluídas) se educam mutuamente, não para a liberdade e o respeito mútuo, não para a entre-ajuda e a solidariedade, mas para a negação disto tudo. Aqueles seriam pais e filhos diferentes da maioria, apesar de tudo. É difícil ser diferente, querer construir uma relação à margem das convenções sociais, que não libertam mas aprisionam.
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Setúbal, 1994.02.20

3 comentários:

Victor Nogueira disse...

viva experimentando

De Amor e de Terra disse...

Em relação ao teu comentário acima, eu diria que se pode ser
diferente em algumas coisas, mas noutras é impossível.
Pode-se ir experimentando, sim, sem dúvida, mas nem tudo e nem sempre...

Bj

Maria Mamede

Victor Nogueira disse...

Ah! Aquele comentário foi para ver se os blogs estavam a funcionar. Calhou ficar aqui como podia ter ficado noutro. Nada tem a ver com o post. Há aparências que iludem!
VM