terça-feira, 25 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (21)

* Victor Nogueira

Finalmente a água voltou: barrenta, jorrando das torneiras aos borbotões ruidosos. Finalmente o prazer de abrir o chuveiro e sentir a carícia da água tépida deslizando pelo nosso corpo!
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O calor continua e o corpo cobre-se de camadinhas de finas gotículas de suor que se não evaporam, tal como sucedia em Luanda.
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A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. Quanto ao Rui apareceu agora dizendo que era um hippie, de tronco nú, vestido com as calças de ganga, um colete da irmã e as joias artesanais dela ao pescoço e nos braços. É o ai Jesus da Alexandrina, que o trata como o menino da avó, com ternurinhas e cuidados risonhos, coisa a que não está muito habituado.
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Bem, façamos um intervalo. Tenho de barbear-me e de ler o jornal, para saber o que se passa pelo mundo.
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Já passou a hora de almoço e já foi tempo de passar por Santa Apolónia para comprar os bilhetes de comboio para o pessoal e para o carro. Embarcaremos no domingo após o almoço. Embarcaremos? Não seria mais apropriada dizer ... encomboioremos?
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Gosto de ir até ao Mindelo, embora a casa precise de arranjos, designadamente pintura, manutenção dos tacos do soalho e das madeiras de janelas e portas, de um aquecedor de água e de uma banca de alumínio na cozinha.. Fica a poucos metros da estação, com ligações ferroviárias ao centro do Porto (a Sul) ou a Vila do Conde e Póvoa de Varzim (a Norte), em viagens que não ultrapassam os vinte minutos. Para além disso a praia fica a 2 quilómetros. E depois sempre há pessoas que me vão reconhecendo ao fim destes anos. No centro da aldeia o homem dos jornais, o talhante, os donos do minimercado, a rapariga da padaria. Mais adiante, junto à praia, a dona de outra loja, um pouco maior e com maior variedade de mercadoria. Contudo já não gosto tanto do pessoal junto à casa, muitos à espreita de comprarem-na e ao terreno adjacente, como cães a um osso. Gosto da casa e do sítio, mas fica demasiado longe para se ir lá durante o ano.
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No verão a população aumenta grandemente, pois trata-se duma praia muito procurada, com cheiro a algas e maresia, calma na zona rochosa e com ondas alterosas e batidas na zona arenosa, embora fria e ventosa para o meu gosto de pessoa nascida e criada nos trópicos. Deste modo no verão, com o comércio, o pessoal da terra procura tirar o sustento para o resto do ano. Fora isso as pessoas vivem da pesca e da agricultura (por trás da casa há um enorme campo que se cultiva), enquanto na praia se recolhem as algas para adubar as terras.
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Por isso há três zonas habitacionais distintas: a mais antiga e tradicional, onde existem o centro comercial primitivo, em torno do adro da igreja velha, e algumas grandes casas típicas de lavradores abastados como a dos meus bisavós maternos para os lados de Barcelos. Mais perto da estrada nacional, para o sítio onde fica a casa de verão que foi do meu avô materno (um homem na cidade criado numa aldeia e que não perdeu o apego ao campo), abundam as casas de emigrantes, umas mais modestas, outras mais sumptuosas, estilo maison sem arvoredo, encafuadas em minúsculo quintal. Entre estas duas zonas fica a estação ferroviária. A terceira zona, junto à praia e ao longo da costa, é a zona dos veraneantes, mais ou menos endinheirados, com enormes casas no meio de grandes quintais arborizados ou com prédios compridos de vários andares. Neste local fica uma outra zona comercial com frutaria, talho, padaria, minimercados, peixaria, tabacaria, restaurantes e geladaria, entre outros.
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O calor continua, com uma intensidade tal que a sede aperta e os joelhos fraquejam. Aqui na Tapada do Mocho o sol bate na fachada da casa durante toda a tarde. Em Setúbal não sinto tanto calor pois durante o dia normalmente não ando na rua. Por seu lado no Departamento onde trabalho existe ar condicionado e em casa sempre se abrem as janelas e, desde este ano, o calor em casa ameniza-se com a refrigerante ventoinha que comprei, que me refrescou muitas vezes.
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Trouxe quatro álbuns do Calvin bem como uma colectânea de anedotas, muitas das quais me divertem imenso. A primeira vez que folheei este livro numa livraria dei por mim a rir às gargalhadas, pelo que resolvi arrumá-lo de novo e rápidamente no mostruário, não fossem pensar que tinha enlouquecido e me ria a bandeiras despregadas só por folhear um simples mas volumoso livro de capa azul. Depois comprei-o numa Feira do Livro e durante algumas noites o meu vizinho velhote do andar de baixo deve ter pensado que eu me passara da mioleira, pois até altas horas da madrugada me deve ter ouvido rir, numa altura em que eu já vivia sózinho.
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O Rui anda ali no corredor exibindo o seu esqueleto bronzeado como se fosse musculado e atlético, ao murro à irmã, esquecendo-se que em resultado de brincadeiras semelhantes ela anteontem torceu-lhe o dedo indicador, o que é um grave acidente com repercussões nos seus exercícios de viola e no seu dedilhar do computador.
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Paço de Arcos, 1993.08.20 (6ª feira)

2 comentários:

De Amor e de Terra disse...

Qualquer diário tem a vantagem (às vezes desvantagem) de nos fazer vivenciar, de novo , um certo dia, seus acontecimentos e suas rotinas... e tal como noutros escritos, sempre me (nos) fazes ver essas emoções.


Maria Mamede

Anónimo disse...

E JÁ QUE A ÁGUA VOLTOU K TAL VIRES TOMAR UM CÁLICE DO AMOR AO MEU BLOG :=)
BJO CARLA GRANJA