domingo, 16 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (14)

* Victor Nogueira
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A mudança da paragem do autocarro tornou o café mais frequentado e menos remansoso em determinadas horas, quando se amontoa pessoal aparecido sabe-se lá de onde. Contudo, em certas horas, ainda continua a ser um local agradável, acolhedor, como simpáticas são normalmente as proprietárias, entre a malta conhecidas como as "manas gordas". Há um outro café, o das escadinhas, também simpático embora mais calmo por não estar em sítio de passagem ou junto a paragem de autocarro.
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Aqui nesta zona residencial ficam parte dos serviços municipais, em área que era para ser um centro comercial, e talvez isso explique o hábito que se criou nos cafés das redondezas dos clientes levarem os comes e bebes para a mesa e, muitas vezes, de retorno para o balcão.
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E foi assim que tudo começou: escolhida a mesa, uns sentaram-se e outros ficaram a fazer o avio e por isso só depois reparámos que a mesa escolhida estava suja, pelo que pedimos ás manas que a limpassem, o que lhes caíu mal, enervou e fez com que uma delas derramasse a cafeteira do chá a ferver sobre as minhas calças o que, diga-se de passagem, não foi pêra doce. Por isso, uma hora depois, estava "caído" no Centro de Enfermagem, porque me doía cada vez mais o local da queimadura.
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Ás dezoito horas a sala de espera encontra-se habitualmente repleta de pacientes quase sempre "pacientes" enquanto aguardam o médico ou o enfermeiro, pelo que resolvi matar o tempo com aquelas revistas e jornais antigos que jazem nas salas de espera de consultórios. E foi assim que peguei na "Nova Gente" e procurei o ponto de encontro onde encontrei a Maria Helena, arquitecta, que mora em Lisboa, cidade que outrora amei mais do que actualmente, pois entretanto habituei-me ao relativo sossego de Évora e de Setúbal, onde quase tudo está ali ao alcance da mão, pese embora e por vezes a pasmaceira das terras pequenas, entremeada embora pelo individualismo e falta de calor e solidariedade das terras grandes.
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Mas não é hoje que vou falar sobre Évora, essa ilha sem mar no meio da planície alentejana ou sobre Setúbal, vagamente parecida com Luanda, onde nasci e vivi durante vinte anos. E também não é sobre Lisboa que falarei desta feita, essa Lisboa por onde ainda gosto de deambular aos fins de semana ou no Verão, quando não há corridas, nem engarrafamentos, nem esperas de fazer perder a paciência e a boa disposição.
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(...)Nas horas vagas leio, procuro conhecer novas terras e novas gentes, ouço música e vou ao cinema ou ao teatro. E também escrevo. E foi num desses que surgiu o Auto-retrato em Passatempo, "inspirado" num poema duma das glórias de Setúbal, de seu nome Bocage, embora se fiquem por aqui as semelhanças e parentescos!
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Com nariz grande, olhar estrelado,
Baixo, cabelo negro, ondulado,
Magro, moreno, mui desajeitado,
Nada ou p'la vida sempre perdoado.
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Buscando amizade, mau achado,
Agindo calma ou mui despeitado,
O êxito logrou, mal torneado,
Com persistência e pouco alegrado.
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Tolerante, mas não libertário,
Conduzindo, longe da multidão,
Na vida procurando liberdade.
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Em tudo mal, buscando seu contrário,
Com ar sério ou risonha feição,
Mal sente, co'a razão, felicidade.
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Setúbal, 1990.03.12

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Se o Retrato for fiel ao Modelo, homem difícil, hein?!



Maria Mamede