quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (17)

* Victor Nogueira
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Estive há pouco a regar as plantas e gosto muito do cheiro da terra seca depois de molhada. Olho pela janela e verifico que as vidraças estão precisando duma limpeza. É estranho, pois morando num sítio tão alto, não consigo livrar-me da poeira. Quando estreamos esta casa nas varandas havia montículos de terra, possívelmente trazidos pelas correntes de ar ascendentes.
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Olhando pela janela vejo os campos ao longe, lá embaixo, cada vez mais afastados pelas casas que se vão construindo; daqui a uns tempos deixarei de morar no limite oriental da cidade. Mas no Verão o único verde é o dos aglomerados de árvores (sobreiros e azinheiras ?), pois a terra ressequida é simplesmente castanha. E á noite, em qualquer altura, a vista é encantadora, com a claridade da iluminação das ruas, das casas e, quase no horizonte, das fábricas da zona industrial da Mitrena., para além do luzeiro cintilante das luzes das povoações dos arredores.
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Como sempre o vento faz vibrar as janelas nas calhas, dum modo monótono, mesmo irritante por vezes. "Música" á qual um dia destes tenho de pôr fim. Para além disso tenho por vezes o acompanhamento da voz esganiçada do cão aqui do vizinho do andar de baixo. Para lá da janela, quando aberta, chega o ruído dos carros que passam lá em baixo na avenida, conjuntamente com o falar das pessoas ali no Parque da Lanchoa, cavaqueando em noites frescas até altas horas da matina. O cãozinho recomeçou os seus latidos; ao menos, eu não incomodo a vizinhança quando não estou em casa. Mas o cãozinho, ah! o cãozinho ... esse ladra ... quando os donos estão ausentes. !
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Embora esteja calor, aqui em casa está um pouco mais fresco do que durante o dia na rua. Últimamente a rua parece um forno, como se estivéssemos no Alentejo, com uma brisa sufocante e uma luminosidade que fere o olhar. De resto não sei se tenho a vista mais sensível, mas a verdade é que há dias em que o brilho do ar é tão intenso que não consigo ler o jornal ao fim de semana além no cimo das escarpas de S.Nicolau., com o estuário do Sado ao fundo e a Serra da Arrábida à direita. Mas aqui á noite, na varanda da sala, corre uma brisa acariciante, conjuntamente com o cheiro da terra molhada de que falei.
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Hoje estou novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" a casa ficou vazia, aliás como sucede quando o Rui e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. Quando me dá a "pancada" normalmente vou sair, andando por aí. Ou telefono ás pessoas conhecidas. Mas hoje nada disso fiz.
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De modo que vi forçadamente uma comédia romântica na Televisão, onde no fim todos(as) casam e presumívelmente viveram felizes até ao fim dos seus dias, como nas histórias de fadas. A história passava-se nos Estados Unidos, pretensamente numa colónia de emigrantes portugueses que tinham um restaurante especializado em ... pizzas deliciosas, com ingredientes cujo segredo passava de geração em geração desde uma avó algarvia!
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E eu a pensar que as pizzas eram uma especialidade italiana. Nada como estas histórias americanas para melhor ficarmos a conhecer este Portugal á beira-mar plantado. É verdade que durante o filme só se falava inglês e que as únicas palavras portuguesas constavam dos cartazes turísticos nas paredes do referido restaurante. Ah! mas não haja desesperos, porque deram a festa de casamento duma das três meninas luso-americanas do filme e durante a mesma os espectadores foram brindados com duas canções em português castiço e mau sotaque: a Sapateia açoriana e um fado lisboeta, que já não me lembro bem se era aquele da morte da andorinha que não põe termo à Primavera.
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O filme era muito ajuízado Pois é, mas uma das meninas, a doidivanas que andava com este e com aquele, casou com o filho dum ricaço, nos primórdios canalizador, enriquecido à custa do seu (dele) trabalho (quando me parece que apenas se enriquece à custa do trabalho ... dos outros). A outra menina, que também gostava do fornicanso, mas só com o noivo, todo de moral á moda antiga, acabou por render-se-lhe, casando com o dito cujo,. um pescador cujo pai seria patrão da futura sogra, embora não me tenha ficado claro se o dito pai era dono dum barco de pesca. A mais intelectual e santinha, irmã da primeira, perdeu o arquitecto de cuja filha era baby-sitter, pois o dito intelectual (muito parecido fisicamente com o meu chefe) preferiu continuar com a esposa legítima. E embora a santinha tivesse rasgado o cheque dos serviços prestados como baby-sitter, por causa das confusões, não perdeu tudo, pois sempre conseguiu ingressar na prestigiada Universidade de Yale, para tirar um curso de Astronomia, graças a um empréstimo-donativo da bondosa patroa da pizzeria.
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E depois de ver um tão romântico filme resolvi sentar-me defronte ao computador para falar com a Maria do Mar. Mas, correndo o tempo e olhando agora para o relógio, noto que já passam 25 minutos da uma da madrugada. A esta hora está ela nos braços de Morfeu em Vale de Lençóis, pelo que sózinho me vou deitar, embalado pelos esganiçados latidos do malfadado cão. Bye, Bye, Kiss, Kiss, que tempo não faltará para continuar esta amena cavaqueira. Entretanto vou aquecer uma bebida para aconchegar o estômago.
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Setúbal, 1993.08.10

2 comentários:

Filoxera disse...

Muito obrigada pelo comentário no Escrito a Quente. Soube bem.
Também me perco nas horas quando viajo pelos blogues...

De Amor e de Terra disse...

Ainda e sempre as memórias e a corrosiva crítica sobre quase tudo...nota-se o amargo disfarçado num sorriso, ou será o contrário?!


Maria Mamede