segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (16)


* Victor Nogueira
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Está uma tarde soalheira, neste final de verão e aproveito a lazeira para agarrar na "machine" e alinhavar umas linhas na sequência da inesperadamente volumosa missiva da Musa d'Ante, que consegui traduzir na sua quase totalidade, embora lembrando-me do tempo em que me virava para a minha secretária e lhe pedia para decifrar-me o que eu havia escrito, o que ela normalmente conseguia. Só que neste caso o pergaminho é doutrem e a dourada prateleira em que estou nem a moço de fretes dá direito! Enquanto escrevo aguardo que do INE me atendam, do outro lado da linha, enquanto ouço uma música estilo cavalgada heróica bachiana.(...)
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Já me atenderam e voltei ao meio do barulho do rádio ali da sala ao lado e a alto ronronar do aparelho de ar condicionado; antes a música heroicamente bachiana! É o meu segunda dia de "trabalho" post-férias e vai-me faltando a paciência para aturar estes dias de nada fazer que já completaram alguns demasiado largos semestres.
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Passei as férias lá para o Norte, para as bandas do berço da nacionalidade, visitando o castelo de Guimarães; igrejas românicas e citâneas celtibéricas, como Sanfins e Briteiros. Uma aventura andar a conduzir naquelas estreitas e sinuosas veredas, mal sinalizadas, com pessoas simpáticas que se metem no carro para nos indicarem o caminho, quando não nos dizem que é já ali à direita enquanto apontam a esquerda, já ali a dois quilómetros, que não pertencem ao sistema métrico do contador do Renault 5, que os multiplica sempre por quatro ou cinco. Mas outro factor de aventura resulta de possuírem outro código de estrada: não abrandam nas cruzamentos, mesmo que se apresentem pela esquerda, o STOP não existe, os motociclistas não usam capacete e entram nas curvas a cortar a direito, os peões ficam aparvalhados à beira da passadeira quando paramos para lhes dar passagem, enquanto os automobilistas não facilitam mesmo nada para entrarmos na "corrente".
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Mas aventura também porque assim, deste modo, não há programa que resista, chegando a noite sem o cumprimento dos objectivos fixados de véspera, na mesa, debruçado sobre o mapa e o guia turístico das preciosidades a visitar ou a vislumbrar. Assim ainda não foi desta que fui ao Gerês, a Trás-os-Montes ou bordejando a margem norte do Rio Douro, para montante.
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Mas o Norte está diferente e poucos troços verdejantes se encontram ao longo dos caminhos ou pelos atalhos. Casas, muitas casas, sejam ou não "maisons" dos "avec" que irrompem agressivamente na paisagem, numa fúria de "apagar" o passado, sejam ou não melhoradas as condições de habitabilídade; os campos e as povoações já não ostentam aquele equilíbrio entre o "natural" e o humanizado.
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No Mindelo, onde os meus pais herdaram a casa de verão do meu avô materno, já pouco resta do antigamente, havendo um contraste nítido entre o coração do povoado inicial e as "cogumélicas" casas de grandes ou menos grandes e cuidados jardins que nascem à beira-mar duma praia rochosa e arenosa que cheira a iodo. Das casas do Zé Povinho, persistem algumas poucas e arruinadas, de granito, que desta feita a máquina fotográfica registou.
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Mas, passado o Verão, o Mindelo e a Póvoa de Varzim retomam a calma e pasmaceira que os "turistas" quebram com o seu "cosmopolitismo" e juventude. Já em Vila do Conde, onde ainda se mantém o ar antigo e uma ou duas ruas manuelinas; (com mais janelas e portas do que em Setúbal), o equilíbrio e o sossego mantém-se pelo ano inteiro.
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Eis-me, pois, regressado a Setúbal, onde amanhã começa mais um Festival de Teatro, este homenageando o Mário de Sá Carneiro, mas que não me seduz muito pelo programa apresentado. Outrora sempre vinham cá companhias de todo o país, das consagradas, que nos permitiam ver ou rever as peças durante o ano representadas em Lisboa, Porto e arredores. E assim se vai perdendo o teatro. Mas não só o teatro. Agora foi a vez do Casino Setubalense, últimamente especializado em pornografia, após a fase do kung-fu e dos lacrimejantes filmes indianos, onde uma vez consegui ver "Por Favor Não Me Mordam o Pescoço", do Polanski, por uma daquelas insólitas surpresas proporcionadas pelo exibidor.
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Segue-se este encerramento ao do Luísa Todi (agora Forum Municipal), ao do Bocage, ao do Grande Salão Recreio do Povo (agora Banco, preservada a fachada) ou ao do Salão da Sociedade Recreativa Perpétua Azeitonense. Consequências do vídeo, embora nada se compare ao envolvimento duma ecrã maior ou menor ou do cavaquear no intervalo, ritual também já ultrapassado nas salas de bolso que proliferam nos centros comerciais, desaguando os espectadores directamente para os corredores "montrados" e feéricamente coloridos.
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(...) Já o sol e a lua se puseram desde que. as linhas anteriores foram escritas, o que significa que este é um novo dia, oscilando entre o sol quente e o cinzento nublado ameaçador de chuva.
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Estou partido, pois andei a mudar estantes para se consigo arrumar em novas prateleiras os livros que proliferam como coelhos. Daqui a pouco vou até Lisboa para mais uma reunião sindical, pelo que não vale a pena ir ali ao arquivo e á secretaria em busca de volumosos e pouco apetitosos processos de obras ou requerimentos de viabilidade para retirar de cada um duas informações para um inquérito industrial do INE sobre loteamentos industriais. De modo que prossigo o alinhavar de linhas para a Musa d'Ante, os ouvidos massacrados pela agudeza e guincharia da música que em alto som irrompe ali da sala da Manel e da Célia, da qual estou separado apenas por um armário de madeira que não chega ao topo.
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Acabei por não ir à Festa do Avante, ao contrário do que programara, pois na véspera do meu regresso ao Sul tive um acidente por ter ido além da chinela. Pus-me a desentupir a canalização com soda cáustica, que espirrou e me mandou sucessivamente para os bancos de urgência dos Hospitais de Vila do Conde e de S. João, no Porto, sem outras consequências que não fosse passar uns dias às escuras, de olhos vendados ou de óculos escuros.
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Como se vê, umas férias aventurosas, com imprevistos ao virar de algumas esquinas, mas sem o cosmopolitismo e o internacionalismo das da Musa d'Ante.
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Apreciei o postal da casa do Karlinhos, que no entanto supunha mais escura e mais austera, mais em sintonia com a gravidade do seu porte de filósofo que mudou o mundo.
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Como terá ela resolvido o seu pungente dilema: comprou o anel ou ficou-se pelo "Ata-me" do Almodovar?
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Bem, parece que o dia se recompôs e o calor sobrepôs-se às potencialmente pluviosas núvens cinzentas.
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Esperemos que a Musa dê notícias e avise quando vier à Pátria, dela, que eu sou cidadão do mundo, embora não tenha passado, na Europa, de Badajoz e de Vila Nueva del Fresno ou Rosal de la Frontera, já não me lembro bem. Lembro-me, sim, que em Badajoz, no tempo da outra senhora. fiquei retido na fronteira, como refém, às ordens da PIDE com outros colegas, por causa do contrabando (de bebidas, roupas e chocolates), enquanto o prevaricador-mor ia a casa (em Évora) buscar dinheiro para pagar a pesada multa. Mas esta é uma história que talvez conte doutra vez.
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Setubal 1990.09.19
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Fotografia:
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A chegada em 1895 a Portugal do primeiro automóvel - Panhard Et Levassor - propriedade do 3º. Conde de Avillez, vem para Santiago. O mesmo automóvel é hoje pertença do Automóvel Clube de Portugal e encontra-se na cidade do Porto.

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Diário na sua essência; mas sempre com muitíssimo interesse e escrito duma maneira viva, que atrai a nossa atenção e se lê sem cansar!


Bj

Maria Mamede