sábado, 22 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (19)

* Victor Nogueira
.
Acabei de temperar o frango para o jantar: sal, como não podia deixar de ser, pimentão doce ou colorau (embora também goste de paprika ou de piri-piri), molho de soja e aguardente.
.
Fora isso continuei a reler os livros do Asterix, que já havia esquecido, e me fazem rir a bandeiras despregadas, sobretudo pela análise de algumas tiras.
.
Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.
.
Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui e para as quais me vem chamar a atenção com frequência.
.
Nem parece que houve fim de semana. Estou muito cansado e dormi à tarde (coisa rara), até ser acordado pelo telefonema da Christine, uma colega e amiga da Susana.
.
Um certo pudor ou receio de expressar os meus sentimentos é que me impede de dizer "Estou triste", (ou "Estou vazio" o que seria imagem mais apropriada) embora procure que a minha voz e conversa o não demonstrem.
.
É meia-noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala.
.
Setúbal 1993.08.15
********************************************************************************

Finalmente a bagagem está toda ali à porta ou no corredor, aguardando o seu transporte para o velho Renault 5, meu companheiro de longas viagens. Tudo isto teria sido mais rápido se as criancinhas ajudassem, mas entre cada transporte ou arrumação surge sempre uma série na televisão que elas têm de ver ou um livro para o Rui ler !
.
Se o meu carro fosse de confiança amanhã metia-me auto-estrada do Norte acima, pois não tenho paciência para esperas e transbordos. Assim, tenho de passar por Paço de Arcos, descarregar, comprar bilhetes para o comboio, voltar a carregar o carro, levá-lo no dia seguinte para Santa Apolónia com uma hora de antecedência, secar na estação até à hora da partida, embarcar, desembarcar em S. Bento, esperar pelo descarrego do carro e ala para o Mindelo. Como se vê, uma aventura que se repetirá no regresso, onde espero ficar em Paço de Arcos alguns dias, em Setembro.
.
Setúbal, 1993.08.17
********************************************************************************
Eis-me finalmente em Paço de Arcos, onde cheguei á hora de almoço. Está muito calor e por pouco ao fim da tarde não fiquei molhado pela chuvada estilo tropical que então repentinamente desabou.
.
De modo que me sentei aqui no quarto do meu tio José João para ocupar o tempo a escrever enquanto ele assiste a um desafio de futebol transmitido pela TV; a minha tia Maria Luísa lá ao fundo, na sala, assiste a outro programa com a Alexandrina, a viúva do meu avô Zé Luís. Quanto ao Rui e à Susana foram para a cozinha especar-se frente a um terceiro televisor, para ver um filme com o Robert De Niro e o Robert Duvall. Televisores não faltam e é difícil haver guerras por causa dos programas (ainda há um quarto aparelho, que está desligado). A contrapartida é que está cada um silencioso para seu lado, o que tem vantagens ou desvantagens conforme as circunstâncias.
.
Paço de Arcos, 1993.08.18 (4ª feira)

2 comentários:

Belisa disse...

Olá

Quero agradecer as visitas e as palavras para mim deixadas..... e dizer que é com o "Ao escorrer da pena e do olhar" e outros....que ganho mais coragem para continuar...

beijos estrelados

De Amor e de Terra disse...

Nas memórias que continuas desfiando, vai-se descobrindo a sensação de solidão, que tentas esconder e às vezes te pesa demais!
Pena a vida não nos dar o que buscamos...
e tanta vez quando dá, é por tão pouco tempo...

Maria Mamede