quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (13)

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* Victor Nogueira
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Dia de correio
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São 12:30. [Em Paço de Arcos] ouço o portão chiar e assomo à janela ... e não vejo ninguém (Algum miúdo que entrou e saiu, penso eu). Mas eis que batem com a aldraba na porta. Abro a e lá está o carteiro no gesto habitual, mão estendida com as cartas (hoje, apenas carta!) Cumprimentamo-nos e agradecemos mutuamente. Fecho a porta. Regresso à sala de estar, pego na tesoura para abrir o sobrescrito, que resguarda as notícias da C. "Olá, mocinho! Tenho apenas 21 anos dizem-me (a idade das, de algumas liberdades consentidas) ... " e continuo numa surpresa crescente, como a quem se revela numa faceta até aí ignorada. Todo eu sou uma crescente surpresa estupefacta! Apago o gira discos - que transmite canções do Nelson Eddy. Estou agradavelmente surpreendido e preciso de concentrar-me para perceber isto tudo, estas linhas inabituais. Volto ao princípio. Releio com os olhos, com a inteligência, com sofreguidão, com todo o meu ser, para aperceber-me duma C. desconhecida. Surpreso, não tanto pelo conteúdo, mas pela forma, pela linguagem invulgar (nela). É verdade que há alguns "senãos". (Não me apercebi ainda, p.exemplo, que ela soubesse que existe uma "certa técnica" aprendida, de beijar). Continuo a ler e, repentinamente, tudo se desmorona, numa enorme decepção. "Não Victor, tens razão, o palavreado não é meu ... "
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Resta me pois saber como é a personagem dum conto de [Urbano] Tavares Rodrigues com quem te queres identificar. É uma curiosidade desenganada que fica em mim. (MCG - 1972.09.06)
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Daqui desta terra
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Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando-se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou! (MCG - 1972.09.21)
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Uma troca justa
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Estou a escrever lentamente por dois motivos, o principal dos quais é o facto desta nova carga da esferográfica ser extra fina, e portanto pouco deslizante pelo papel. (...) Fiz um negócio com o Camilo e trocámos as cargas das canetas. Sem dúvida alguma ambos lucrámos; ele porque escreve mais palavras por linha, eu porque escrevo mais por minuto. Estas cartas, escritas ao sabor do tempo e das ocasiões, lidas posteriormente, devem mostrar o seu verdadeiro valor, isto é, nenhum. (MCG - 1973.01.22)
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O raio da tinta pega se à pele
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Olho para os dedos que estão cheios de tinta. Pareço um menino da instrução primária. Como o sistema de enchimento da caneta está estragado - e só em acessórios esta caneta já me gastou mais que uma nova - tenho de fazer uma grande ginástica para enchê-la. É sempre esta fita. E o raio da tinta pega se à pele! (MCG - 1973.01.31) (1)
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1 - Anteriormente: "Esta caneta parece me-que torna mais ilegível a minha gatafunhada. Mas na sequência de pequenos acidentes em que Janeiro tem sido pródigo, a minha velha "Pelikan" passou à reserva por se ter avariado o sistema de enchimento. Recorri à outra, que tem um aparo demasiado fino" (MCG - 1973.01.16)
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O apartado 65
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O Apartado 65 (1) pede-me para dizer-te que tem sentido muito a tua falta e que se sente muito sozinhito (como diria o João Machado); ele bem gostaria de dar-me o contentamento das tuas notícias, e para isso bem se mantém alerta e vigilante, numa expectativa gorada sempre que se ouvem os passos do carteiro e o acender da luz. Mas é quase tudo ali p'ró lado, p'ró 63, que por sinal até é uma agência de casamentos muito falada nos pequenos anúncios do Diário de Notícias! Coitadinho, eu bem lhe digo que se não preocupe por ter a mala vazia quando lá vou, mas que queres, fica sempre triste por não me contentar. Digo lhe que os negócios do 63 são outros, que ali o 65 é mais para outros negócios, de coração ou não, mas ele não se convence. Lá o deixo meditabundo, mas diz me lá. C., que mais lhe hei de eu dizer? Ás vezes torno lá à tarde, para fazê-lo apanhar uma lufada de ar fresco, mas ele mostra-me logo que não! Vês, C., vês o que fazes? Habituaste-lo mal e agora ...
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Sim, que o desconsolo dele acaba por ser contagioso. (MCG - 1973.04.12).
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1 - Sempre tive apartado em Lisboa, enquanto estudante, e em Évora, até de lá sair. Dava-me liberdade de mudar de quarto quando tivesse de acontecer ou de reexpedir a correspondência, quando em férias. Em Lisboa o apartado ficava na Estação dos CTT da Praça do Comércio, perto dos Paços do Concelho e era, salvo erro, o 2354.
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Uma ida ao correio
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Vai uma pessoa de manhã ao correio, para o monte das que esperam pela abertura dos portões. Vai uma pessoa após o almoço, a cidade envolta num bafo quente. Penosamente o corpo abre caminho pelas ondas de calor. Sai do Arcada, curva à esquerda, segue em frente até ao Largo do Sertório. Faltam só 20 passos, 19. 18 ... 10 . 9 . 8 . 7 . 6 . 5 . 4 . 3 . 2 . 1 . (Uffa, finalmente a sombra dos arcos do correio, agora mais bonito porque deitaram abaixo o prédio nas traseiras do edifício da Câmara Municipal - o prédio que agora se avista é lindo. Deviam, no terreno vago, plantar erva e árvores frondosas. E colocar bancos. Mas tá quieto! Já andam lá tractores a escavar. Deve ser para outro prédio.) Entretanto entro no edifício. Viro à esquerda, dirijo-me para o apartado e ... levanto-me da mesa onde estou e procuro no monte das cartas e ... ah! deve estar ali. EUREKA - cá está! Não é! Olha, não encontro. Paciência. Mas que baldes de água ando apanhando! Safa! Nem um postalinho! (MCG - 1973.06.17)
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Pena de pato
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Há que tempos não escrevo com uma caneta estilo pena de pato, daquelas que temos de molhar frequentemente no tinteiro. Quando eu tinha para aí 7 anos - menino e moço em casa de meus pais - era com uma maquineta destas que se aprendia a escrever. Claro que eram mais os borrões que as palavras. (MCG - 1975.01.28)
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INcomunicando
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Antigamente as pessoas escreviam muito e as cartas eram meio de transmitir notícias e muitas delas, com maior ou menor valor literário, tornaram-se testemunho dos factos, acontecimentos, ideias e sentimentos. Mas hoje, hoje as pessoas telefonam ou encontram-se, devido à facilidade e rapidez dos transportes e das comunicações, e o tempo é pouco, paradoxalmente, devido à sobrecarga do que se gasta em transportes, sentado frente à TV ou em tarefas domésticas.
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O mesmo sucede com o convívio e a conversação: por vários motivos os cafés e as tertúlias desaparecem, só se conhece o vizinho da frente ou do lado, quando se conhece, e as pessoas metem-se na sua concha, casulo, carapaça ou buraco. Muita gente junta, ao alcance da mão ou da voz, não significa que estejamos mais acompanhados e humanizados. (MMA - 1993.08.19)
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(...)
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Hoje, que te escrevo, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que me lês, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias à nossa frente. (MMA - 1994.01.01)

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Tantas recordações de espera; tantas de coração suspenso, na ilusão da carta que não chega...
fizeste-me lembrar alguns poemas sobre esse assunto...
e como dói essa ânsia!


Maria Mamede