sábado, 18 de agosto de 2007

Um filme: S. Francisco de Assis, de Liliana Cavani

* Victor Nogueira
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Ontem a RTP na sua noite de cinema transmitiu o filme italiano "S.Francisco de Assis", realizado por Liliana Cavani. O apresentador comparou-o ao "Evangelho segundo S.Mateus", de Piero Paolo Pasolini, premiado pelo Office Catholique International du Cinema (?) - OCIC - Este último filme, cinematização daquele Evangelho, caracteriza-se pela rudeza e crueza das suas imagens e cenas. Os seus personagens são gente do povo: não são bonitinhos, como Adão e a Eva da "Biblia". Este realizador é comunista, e há pouco tempo viu galardoado por aquele organismo um outro filme seu, o que levantou uma onda de protesto por parte de determinado sector dos católicos!
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Mas retomemos o fio à meada. Voltemos ao "S.Francisco de Assis" . Após uma juventude despreocupada, Francisco resolve despojar-se de todos os seus bens materiais e viver segundo o desprendimento evangélico. Em breve se juntam a ele dois outros homens. A sua vida miserável, o seu deprendimento dos bens materiais, o escrupuloso respeito pelos preceitos evangélicos -"Vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos Céus; depois vem e segue-me." e "Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou de beber, nem quanto ao vosso corpo com que haveis de vestir. (...) O Vosso Pai Celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o seu reino e a sua justiça, e tudo o que mais vos será dado por acréscimo. Não vos inquieteis, portanto, com o dia de amanhã.", tudo isto, como escrevia eu, escandaliza a hierarquia da igreja, ameaçada pela proliferação de heresias como a dos Albigenses. Mas não só a hierarquia; os leigos, demasiado realistas e comprometidos com os bens materiais, fazem chacota deles. Estou a lembrar-me daquela cena em que Franscisco envia os seus companheiros em diferentes direcções para pregarem a boa nova.
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Rufino terá que falar na Sé. Balbucia, suplica que seja enviado outro em seu lugar, pois não sabe falar e tem vergonha de fazê-lo em frente aos seus familiares e amigos que abandonou para seguir Franscisco. Este, para humilhá-lo pelos seus escrúpulos, ordena-lhe que vá, ... apenas de calções. A medo, entra na igreja, atravessa a multidão atónita e dirige-se para o altar. A assembleia começa a vaiá-lo. Cada vez mais constrangido, perturbado pelo clamor e pela chacota crescentes, não consegue senão repetir, quase inaudivelmente "Cristo disse: Amai-vos uns aos outros ..." Como são despreziveis os homens com a sua miserável tacanhez de espírito, a sua estupidez, a sua falta de caridade, a sua superioridade farisaica!
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O número dos adeptos de Francisco aumenta mais e mais e os problemas também. São já tantos que este desconhece muitos deles. Incapazes de aceitarem a total renúncia de bens e cuidados materiais, eles criticam-no frequentemente, mesmo quando ele afirma não ser nada de transcendente o que propõe: viverem, voluntáriamente, como a esmagadora maioria dos seus semelhantes, que nada possuíam e viviam miserávelmente. Há aqui uma situação flagrantemente semelhante à do mundo dos nossos dias, em que o número de miseráveis suplanta, de longe, o dos opulentos. Pretendem uma renovação da ordem, a escritura de novas regras, "onde esteja escrito o que devem fazer e o que devem deixar de fazer". E Francisco não consegue convencê-los de que não é necessário que os doutores as escrevam porque já as possuem: o Evangelho.
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Há em Francisco uma constante preocupação pela vivência da doutrina cristã, uma vivência real, traduzida em acções, em modos de vida. Na sequência daquela cena que atrás transcrevi, Francisco, também em calções, entra na igreja, dirige-se para junto de Rufino. Mas este está demasiado perturbado. Francisco, olha á sua volta (o pandemónio é indescretível) apodera-se dum crucifixo e coloca-o junto a Rufino. O pandemónio reduz-se cada vez mais, transforma-se num múrmúrio e esvai-se. Francisco, então, inicia um àspero discurso no qual critica todos aqueles que se prostam e reverenciam um pedaço de madeira enquanto, numa atitude pouco caridosa e fraterna, apupam um semelhante seu que lhes vai falar da Palavra de Deus.
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Em todo o filme transparece uma crítica contra a inautenticidade da aplicação do Evangelho por parte dos fiéis e da hierarquia, contra a falta de confiança nos cuidados da Providência Divina, contra a vassalagem daqueles "homens de pouca fé" a dois senhores diferentes. (...) (NSF - 1968.10.05)
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NOTA ACTUAL - O franciscano Pe. Melícias e outros altos membros da hierarquia católica, teriam continuado na Ordem ou na Igreja, se por acaso Francisco de Assis regressasse hoje? Ou seria considerado louco, porventura um subversivo, talvez mesmo um terrorista, um «vermelho» a abater, se a excomunhão não fosse suficiente? A resposta é vossa !

1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Neste mundo, haverá sempre alguns, pouquíssimos, Franciscos de Assis imitadores do Cristo, para re-lembrarem o Amor e a Justiça que Ele(esse mesmo Cristo) pregou,Esse a quem Amo e tento seguir; mas, evidentemente, haverá sempre do outro lado, os defensores dos poderes deste mundo que por eles, de tudo são capazes...
Cenas como essa do filme de que falas, foram, são e serão (de muitos modos diferentes) uma constante em todo o Mundo; e embora eu acredite que caminhamos
para uma Nova Era, que estamos no século do Regresso, a verdade é que demorará "eternidades"!...

bj
Maria Mamede