* Victor Nogueira
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Barroso lamenta que "não tenha sido possível conciliar a democratização do ensino com a exigência e a qualidade", recordando que, antes do 25 de Abril de 1974, "apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho".
* Victor Nogueira
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Este é o meu contraponto à excelência de Durão.
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Em Angola onde nasci e vivi, qual era a excelência do ensino antes do 25 de Abril ?
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Do ensino primário e do Liceu falo aqui:
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(...) Em Luanda nasci / Em Luanda vivi / Em Luanda estudei // Não Angola mas Portugal / Todos os rios e afluentes / Todas as linhas férreas e apeadeiros / Todas as cidades e vilas / Todos os reis e algumas batalhas / as plantas e animais / que não eram do meu país. // De Angola /pouco sabíamos /até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março // Veio a guerra e ....................a mentira / que alimenta / ..................a Guerra, / Veio a guerra e a violência / veio a guerra e a liberdade. (...)»
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No Liceu as aulas eram teóricas – ao contrário do que sucedia nas escolas industriais - e apenas uma vez em Ciências Naturais foi dissecado uma rã, enquanto que no laboratório de ciências físico-químicas (o Planeta Proibido, como lhe chamávamos) entrámos duas ou 3 vezes para ver o funcionamento duma máquina a vapor ou o professor a fazer umas experiências.
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A esmagadora maioria dos meus colegas no Liceu – exclusivamente masculino até ao 5º ano, equivalente ao actual 9º - eram “brancos”, rapazes ou raparigas – muitos nascidos em Angola. E da minoria de outras etnias, a esmagadora maioria no 3º ciclo (equivalente aos actuais 10º a 12º ano) eram do sexo masculino.
Na Universidade em Portugal a liberdade para questionar - nas aulas - era menor do que no Liceu em Luanda, onde no 3º ciclo e nas aulas de Geografia alguns de nós defendíamos a independência de Angola (aliás e numa perspectiva multi-racial também o meu pai a defendia), e nas aulas de Organização Política e Administrativa da Nação eu argumentava - exclusivamente com base no livro único superiormente aprovado para o "Portugal do Minho a Timor" - que do ponto de vista teórico o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão eram idênticos ao corporativismo português (na biblioteca do meu pai - essencialmente livros técnicos de engenharia civil ou de "faça você mesmo" - havia a obra "Ascensão e Queda do III Reich" de William L. Shirer, uma "denúncia" do Nazismo).
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Mas se no Liceu Nacional Salvador Correia em Luanda, em 1964/65, nos toleravam estas “ousadias”, elas eram consideradas por alguns dos pouquíssimos professores que as permitiam, como “verdores” da juventude, que nos passariam com a “maturidade”.
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Era pois esta a “excelência” do ensino no Liceu e nos colégios particulares que frequentei, em Luanda e no Porto. No meu curso do Salvador Correia, os 5 que conseguimos aprovação em todas as disciplinas para frequentarmos Economia em Portugal eram uma minoria face à minoria dos cerca de 25 matriculados na alínea g). Aqui já se haviam apurado entre a minoria a minoria das "excelenciazinhas" com direito de acesso às "excelências" baboseadas por Durão Barroso.
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Quanto à Universidade, o que vim encontrar em Portugal, em Económicas, em 1966, foram aulas teóricas com 250 alunos ou mais em Matemáticas Gerais - e quase o dobro em Direito Civil - e uma cadeira bianual de Propedêutica Comercial, para nos darem, entre outros, os conhecimentos de Estatística e de Contabilidade Geral que à pretensa “elite” o Liceu nos não fornecera.
Dos mais de quinhentos alunos do 1º ano de economia e finanças em Lisboa, quatro éramos de Luanda. O 5º matriculou-se na Faculdade de Economia do Porto.
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Em Matemáticas Gerais, com o Fernando de Jesus, na 1ª aula teórica, as boas vindas aos novos alunos - que se consideravam uns "heróis" por serem a minoria da minoria que no Liceu vencera a barreira da Matemática - "aquilo que vocês aprenderam no Liceu nada tem a ver com a Matemática, esqueçam-no, agora é que vão aprender". Note-se que durante o Liceu só tive necessidade deexplicadores particulares a inglês, para complementar o do 3º ciclo com a "prática" da conversação. A "prática" do francês fora adquirida anteriormente e durante os dois anos em que passei as férias grandes em casa de amigos na África Equatorial Francesa.
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E nunca efectivamente havíamos ouvido falar em Álgebra Booleana e na Teoria dos Conjuntos. O quadro era constituído por 3 ou 4 placas de ardósia e ele começa a desbobinar escrevendo de costas voltadas para os estudantes, sempre sem parar, sempre a escrever, com muitos "como é evidente" e nós sem vermos as evidências. Desesperados, começámos a copiar do quadro para os cadernos (as Folhas eram editadas com atraso pela Associação dos Estudantes) e ele escrevendo, escrevendo, escrevendo, com muitas "evidências" pelo meio. Ainda íamos a meio de copiar mecanicamente o 1º quadro e já ele terminara o 3º ou 4º e apagava o 1º. Nas aulas práticas as turmas eram menores, cerca de 30 ou 40 alunos. Logo na 1ª as boas vindas do assistente: "Daqui a 15 dias a última fila já desistiu, daqui a um mês desiste a 2ª, lá pelo Natal só deve haver metade do curso". E assim sucessivamente até à estocada final "Ao fim do ano só devem chegar 2 ou 3, se chegarem".
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Direito Civil era dado pelo Dias Marques também professor da Faculdade de Direito de Lisboa (A sebenta de Económicas era igual à de Direito, salvo o frontispício - Uma dizia Universidade Clássica de Lisboa, Faculdade de Direito, a outra Universidade Técnica de Lisboa - Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras Aqui as turmas também eram imensas, a maioria dos estudantes em pé e apinhando-se, e a tourada era serem os alunos "varridos" com notas baixas por "não usarem linguagem jurídica como é vossa obrigação", argumentava o professor aos protestos de quem lhe dizia que éramos estudantes de economia e não de direito.
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Economia I tinha aulas teóricas – menos superlotadas, pois havia mais professores - - e práticas e nas teóricas calhou-me o Oehen Gonçalves, assistente, cujas prelecções não se conseguiam seguir pois deixava os assuntos e as frases a meio e continuava com outro e assim sucessivamente. O livro base eram as "Lições de Economia", do Pereira de Moura.
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No 1º ano as únicas aulas interessantes e que me cativaram – combinando a teoria com a prática - foram as de Geografia Económica Portuguesa, do Simões Lopes, mas com a sala pequena para a imensidão de alunos.
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Depois de 1974 fui professor do ensino técnico e apercebi-me que não poucos alunos meus se limitavam a "reproduzir" o livro de apoio. E um dia e em várias turmas disse a vários deles que lessem um parágrafo e o explicassem por palavras deles. Muitos não foram capazes, desconheciam o significado de termos que para mim eram do vocabulário corrente, para além das dificuldades de raciocínio abstracto.
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Consciencializei-me que embora estivesse a dar aulas em português, numa linguagem que me parecia acessível e compreensível, este português "escolar" era um idioma "estranho" para muitos dos meus alunos, filhos de meios operários, que também se exprimiam mas num outro português. Eu entendia o deles, eles nem sempre entendiam o meu, sobretudo nas aulas e face às matérias que eu lecionava. As competências por eles adquiridas no meio social de origem eram diferentes das minhas - as minhas baseadas no raciocínio abstracto, a deles no raciocínio concreto e no "fazer" e menos no discurso oral e ainda menos no discurso escrito.
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Quando se fala de “excelência”, de que “excelência” estamos a falar?
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Gravura – Dinossauro Excelentíssimo, escrito por José Cardoso Pires, ilustrado por João Abel Manta (1970/1972 ), de que se dá um extracto:
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“Como no Reino só havia 1-Único Mestre que tudo podia e tudo lo mandava, cada dê-erre pretendia enganar os outros fingindo que era o mais importante logo a seguir ao Chefe. Daí o conhecido estribilho
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«O EXCELENTÍSSIMO NÃO SABE COM QUEM ESTÁ A FALAR»
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que se ouvia constantemente nas cenas de rua da Comarca dos Doutores.
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Filhos e netos de camponeses que enriqueceram, enriqueforam e que em ricos serão sempre camponeses por mais que disfarcem, estes exemplares caracterizavam-se por possuírem hábitos sedentários, preferindo as áreas das secretarias e outras de clima acentuadamente burocrático onde a vida decorre nos ciclos naturais da chuva e dos impostos.
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Deslocavam-se com solenidade difusa, à custa dos seus canudos de bacharéis que utilizavam como membrana extensora do aparelho bucal e do abdómen ou como apêndice perfurador para abrir caminhos subterrâneos no planeta dos decretos.
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Hoje está historicamente provado que os dê-erres eram dotados de grande instinto gregário. Se bem que desvairados na voracidade, davam provas de apreciável sentido colectivo na luta contra as maiorias dos mexilhões, dominando-as pelo cantar gargarejado com manobras de ponto e vírgula. Assinavam com DR. Sempre com DR., fizesse sol ou tempestade. Transformaram essa marca no entre-parênteses do seu nome e não podiam dispensá-la ao telefone, na voz, na família e nas iniciais do pijama.»
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