24 de Abril de 2014 às 15:22
em évoraburgomedieval - o estertor do regime por Victor Nogueira
nota prévia
A ocupação de Angola e Moçambique verificou-se nos séculos XIX (último quartel) e XX (1º quartel), apesar da resistência dos povos destes dois territórios, ocupação possibilitada pela superioridade técnica do armamento das Forças Expedicionárias Portuguesas.
É em 4 da Fevereiro de 1961 que se dá o início da Guerra Colonial, com o assalto às cadeias de Luanda pelo MPLA (de inspiração marxista e posteriormente apoiado também pela social-democracia europeia) para libertar presos políticos, seguidos da chacina por brancos de Luanda dos negros dos muceques e numerosas prisões, a que se seguiram em 15 de Março os massacres de colonos e trabalhadores bailundos pelas forças da UPA (financiadas pelos EUA e a Administração Kennedy), precedido pelo massacre perpetrado em Janeiro desse ano pelas Forças Armadas Portuguesas, com napalm, de milhares de camponeses em greve contra o regime da monocultura do algodão na Baixa do Cassange (Angola), em Janeiro desse ano e cuja divulgação a censura não permitiu.
1961 foi também o ano do assalto ao paquete Santa Maria, rebaptizado de Santa Liberdade (capitão Henrique Galvão), do assalto frustrado ao Quartel de Beja (Manuel Serra, capitão Varela Gomes e general Humberto Delgado) e da tentativa de golpe do general Botelho Moniz envolvendo também o Presidente da República, general Craveiro Lopes, e um certo Costa Gomes que em 1974/1976 terá um papel crucial, maior que o de Spínola, após o desencadear do Movimento dos Capitães e, após a derrota de Spínola, na tentativa de salvaguarda daquilo que seriam chamadas as “Conquistas da Revolução”, na então Constituição da República mais progressista do mundo capitalista. Ano que terminou com a invasão do chamado Estado Português da Índia pela União Indiana, goradas todas as tentativas desta para a resolução pacífica do problema.
Nestas notas se fala da crise na Universidade em 1969 e também da situação da agricultura no Alentejo. Apesar das "celebrações" do 10 de Junho, o Dia da Raça, que comemorava a gesta imperial e permitia a condecoração dos "heróis", muitos física ou psiquicamente mutilados, numa guerra colonial que se arrastou por 13 anos. E se mortos estivessem os "heróis", de preto e perfiladas estariam as mães, viúvas, familiares, para receberem a medalha, mesmo que o país se esvaziasse de homens, embarcados para a guerra ou para a emigração, num país em ruínas e cada vez mais entregue aos "anciãos".
Armadilhado o duelo entre a "evolução" e a "continuidade", sem revolução à vista, o nó górdio só poderia ser cortado pelas próprias Forças Armadas, aparentemente oscilando a solução entre uma fascização ainda maior, defendida pelo general Kaulza de Arriaga (que em 1961 teve importante papel na derrota do golpe Botelho Moniz) e a mudança cosmética de Spínola, o general do pingalim e monóculo, [observador das tropas nazis durante a invasão da URSS] que tal como Marcelo pretendia apenas uma operação que salvasse sobretudo a "joia da coroa", Angola, para que tudo continuasse na mesma. Na sombra, os capitães, uma massa heterogénea, cuja orientação final era uma incógnita.
Em Moçambique uma parte da hierarquia Católica e do clero demarcavam-se da guerra colonial - tal como em Portugal os católicos ditos progressistas - e denunciava os massacres cometidos pelas Forças Armadas sobre as populações civis.
O texto seguinte é constituído por extractos da minha correspondência nas datas indicadas. Apesar da censura, da PIDE e dos seus informadores, era possível saber do que sucedia lendo nas entrelinhas e ouvindo as emissões estrangeiras como a BBC, a Rádio Portugal Livre, a Voz da Liberdade ou a Radio Moscovo, estas últimas com interferências que as tornavam não poucas vezes inaudíveis. Naturalmente que a audição destas últimas não é referida na minha correspondência da altura.
1969
Dentro de momentos a Praça do Giraldo será cenário duma manifestação [do 10 de Junho] que pretendem grandiosa e durante a qual se enaltecerá essa gloriosa e alegremente sacrificada juventude portuguesa que em terras de África defende a herança dos seus avoengos, numa guerra santa sobre cujos fundamentos se não admitem dúvidas.
Entretanto a Universidade de Coimbra está em greve desde há largas semanas, greve de que os jornais não falam, a não ser publicando os diversos e por vezes incoerentes e inverosímeis comunicados das autoridades académicas. A música continua a ser monoral. (...) (NSF 1969.06.10)
1970
Isto por cá não anda muito bom. Entretanto o problema do Ultramar continua a ser explorado emocionalmente, com completo desrespeito pelos interesses do povo português. As greves sucedem‑se diariamente - só por portas travessas se sabe - e as deserções do exército, nomeadamente dos oficiais milicianos, continuam a verificar-se. A emigração aumenta. A nau mete água por muitos rombos. (NSF - 1970.07.18)
1972
À minha direita dois velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio; não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha, iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus, estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)
1973
Nos períodos de ponta [no Alentejo] já existe dificuldade em recrutar mão-de-obra indiferenciada, em contraste com os tempos de outrora. Antigamente e segundo vários testemunhos recolhidos [à margem dos inquéritos], p.ex., chegavam a juntar-se duzentos trabalhadores na praça do Vimieiro frente ao posto da GNR implorando emprego e, na Igrejinha, normalmente apenas uns duzentos dos oitocentos trabalhadores conseguiam trabalho.
A emigração terá sido a última resposta dos trabalhadores rurais a esta situação de miséria, permitindo aos que permaneceram auferirem melhores jornas e obrigando à mecanização dos trabalhos agrícolas.
(...) E no entanto a crise da agricultura vem de longe, no tempo. Nos primeiros anos de 1930 a Direcção da Associação dos Trabalhadores, na Igrejinha, recebeu um ofício [do Governo] inquirindo de propostas para resolver as crises de trabalho: a divisão e o arrendamento das propriedades, foi a resposta. Dias depois, uma camioneta cheia de polícias armados parou à porta daquela Associação e levou presos os membros da Direcção, segundo o depoimento dum velhote que fazia parte dela e que me surpreendeu pelas referências feitas à CGT (Confederação Geral do Trabalho). "Ainda estivemos presos 12 dias. Ora se eles queriam fechar a Associação, escusavam de estar com estas coisas. Eles podem, logo mandam". (...) (1973 - Inquéritos às Condições de Vida da População de Arraiolos)
Chegou agora o [Emídio] Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...)
Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista..."), faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
Deparo assim com uma arraia-miúda tradicionalista em política agrícola - pese embora a sua consciência aguda de alguns problemas - e com outra mais consciente, mais aberta, que tem um certo "desprezo" por aqueles. Mas o sentimento de que a agricultura está em crise é mais ou menos geral e que na terra apenas ficam os inválidos e os analfabetos, sem brio profissional. (1973.03.26)
Só fiz um inquérito hoje. Um velhote de 72 anos, cabo reformado da GNR e ex-comandante do posto do Vimieiro. Muitos elogios ao [Presidente do Conselho de Ministros] Marcelo [Caetano] (já o carcereiro de Arraiolos me dissera: "Deus o conserve por muitos e bons anos"). Um casal de velhotes simpáticos, à moda antiga, que nunca bateram nos filhos, que no entanto tinham de andar na linha, nada de saídas nem bailes. (MCG - 1973.03.16)
No Giraldo Square erguem-se bancadas e toldos, que vedavam ao trânsito automóvel a rua da Selaria (ou 5 de Outubro). O Giraldo é uma "bancadaria" para [as comemorações d]o 10 de Junho, que este ano deve ser comemorado em grande, para compensar os desastres que se vão averbando na Guiné e no Norte de Moçambique. (...) Domingo próximo, em Portugal de lés a lés, viver-se-ão jornadas de fervor patriótico! (MCG - 1973.06.07)
Encontrei hoje a primeira pessoa que me falou abertamente contra a "guerra no nosso Ultramar". ("nosso, não - acrescentou - que eu não tenho lá nada") Mas não falou contra por nobres ideias. Arrendatário de 500 ha de terras (desde há 49 anos), pareceu-me um lavrador à antiga, estilo senhor de escravos, com salários de fome, condenado à morte, [tal] como o segundo, um rendeiro de 15 ha [desde] há 30 anos. O mundo andou e eles ficaram para trás. Ganharam a batalha durante 40 anos mas perderam a guerra.
Nas pesquisas que fiz pela biblioteca do Instituto descobri 2 livritos interessantes, dum tal Pequito Rebelo, pessoa célebre na altura, sobre a agricultura, cerca de 1925 / 1931 (são dessa altura) Por essa altura (1925) o Governo da I República queria promulgar uma lei da reforma agrária (não sei se ainda conseguiu fazê-lo), para divisão dos latifúndios do Alentejo e distribuição das terras pelos tipos do Norte, uma tentativa para diminuir a emigração para o Brasil. E o Pequito Rebelo desenvolve toda uma argumentação para justificar a manutenção do estado de coisas. Um primor.
Claro que o 28 de Maio de 1926 permitiu o "triunfo" momentâneo destes tipos como os que citei atrás. A lei que o Ministro Ezequiel Campos pensava promulgar era chamada de "comunista" pelo Pequito.
Não houve "revolução" no sentido de se proceder à reforma agrária. Mas o desenvolvimento do Centro e Norte da Europa determinou o êxodo, primeiro dos rurais e agora dos operários e doutros jovens. Agora gritam que não têm pessoal, falam contra a emigração e a guerra. (MCG - 1973.06.08)
(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Aqui à minha direita, muito ternos, uma moça conversa com o namorado e deixa entrever um grande pedaço da pele das costas, entre as calças e a blusa. Questões de posição! Á esquerda, um marinheiro com familiares (?) exibe a sua condecoração de fresca data.
(…) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira.
Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "”O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano, Presidente do Conselho de Ministros]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta-moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) ( MCG - 1973.06.10)
30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contra -manifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa.). (MCG - 1973.07.19)
Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia-se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A Oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo [Caetano] bater-se-á contra nada. (MCG - 1973.10.25).
Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente. (MCG 1973.1126)
Os magalas ainda não embarcaram, continuando a encher ruas e cafés. Cheguei há instantes da tabacaria, onde confirmei um anti-slogan: "Não telefone, vá!" Uma hora, foi o tempo que levei para conseguir uma chamada para Lisboa. (...)
A fúria do Zé do Casarão - Hoje à tarde o dono do Zé do Casarão estava furioso, telefonando quando por lá passei a comprar o "Comércio do Funchal" (agora gastando páginas numa inútil polémica com a "República"; uma guerra de alecrim e manjerona!). E o senhor desabafou comigo. Estava furioso com o chefe da PIDE. Que mandou lá buscar o último fascículo da "Enciclopédia do Vilhena", que foi devolvido meia hora depois, por um contínuo, que disse: "O senhor chefe diz que pode vender!" Ah! Ah! Ah! Porque, dizia o Zé, “Isto é um abuso. Se queria ler, pedia-mo emprestado. Porque ele não tem competência para decidir ou não da apreensão de revistas e livros, sem autorização do Ministro do Interior." Ah! Ah! Ah! E acrescento-lhe eu: "E de qualquer modo não podia levá-lo sem levantar um auto de apreensão" E lá deixei o Zé, furioso, telefonando não sei para quem." (1) (MCG - 1973.11.27)
Para além da censura prévia dos textos a PIDE ou seus informadores (os bufos) assistiam a todos os espectáculos para os "devidos efeitos" comunicacionais aos "superiores". Uma vez assistimos a um espectáculo no Garcia de Resende; descuidadamente li no camarote e no intervalo uma qualquer revista "retirada do mercado" pela PIDE. Mas à saída do Garcia de Resende o Janicas foi abordado por esta para ir ao Posto para explicar a posse da tal revista subversiva que trazia debaixo do braço e a malta acompanhou-o ao posto, onde o chefe da PIDE dizia que podíamos ir embora descansados, pois nada aconteceria ao nosso colega, que estava só a prestar umas declarações, pois "a delicadeza é o timbre da corporação", ao que lhe respondi, "pois, pois, mas só saímos daqui com o nosso colega", enquanto ele com um sobretudo cor de camelo andava na sala dum lado para o outro em largas passadas. E perante a nossa atitude lá deu ordem de soltura ao Janicas, que salvo erro tinha comprado a revista numa livraria, a do António, na Rua Serpa Pinto, onde a malta se "abastecia" por debaixo do balcão, tal como sucedia no Nazareth
1974
E então, que me dizes ao aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose á mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG – 1974.01.03)
- Na véspera, em Valverde, Évora, houve um debate animado entre o [Emídio] Guerreiro e dois regentes agrícolas, professores na Escola de Regentes Agrícolas, sendo um deles proprietário. Este, mais velhote, encerrou-se num beco sem saída: o Alentejo não tem condições para a agricultura. Não tem e não tem! Pronto! Nem há possibilidade de reconversão agrícola ou de reforma agrária. A experiência do Eng.º Canelas? [nosso professor de Gestão de Empresas Agrícolas e que nos tem proporcionado – aos seus alunos - visitas de estudo a empresas agrícolas “novas”] A ver vamos (ele há de falhar, deixem estar, estava implícito na sua resposta. "Isso é porque tem o dinheiro da CUF e não apanhou ainda um mau ano agrícola”. Enfim, viva a rotina! (MCG -1974.02.11)
Houve ontem fita na Assembleia Nacional: o deputado Mota Amaral (1) fez um discurso a defender as teses de Spínola (federação de Portugal com as colónias), mas as interrupções de extrema-direita teriam sido de tal ordem que o Presidente da Assembleia o aconselhou a não permitir mais interrupções, que estavam a assumir um tom indigno da importância do assunto. Vá lá, parece que o senhor Cazal Ribeiro e sua camarilha não chegaram a vias de facto e tentativa de agressão física como no ano passado, durante uma intervenção do então deputado Miller Guerra que advogava a livre discussão do problema chamado ultramarino. (MCG - 1974.03.08)
(1) Mota Amaral foi um dos membros da chamada ala liberal da Assembleia da República, liderada por Pinto Leite (morto num acidente de aviação na Guiné-Bissau) e Sá Carneiro, "ala liberal" que na sua maioria haveria de fundar o PPD/PSD após o 25 de Abril. Mota Amaral foi depois e durante muitos anos Presidente do Governo Regional dos Açores e posteriormente Presidente da Assembleia da República. Sá Carneiro, posteriormente um anticomunista assumindo, haveria de ser Primeiro-ministro, morrendo num acidente de aviação nas vésperas das eleições para a Presidência da República, em que apoiava em conjunto com o CDS/PP o candidato da extrema-direita, general Soares Carneiro
Hoje foi o Dia da Polícia e está explicado porquê toda a semana têm desfilado pelas ruas da cidade: preparação do grande acontecimento, em que estrearam os capacetes cinzentos com viseira protectora, espingarda de baioneta calada ao ombro, deixando, na esquadra, o escudo protector das pedradas dos manifestantes. 50 000 mil contos teria sido a quantia gasta nos últimos tempos pelo Governo para equipar a polícia. Ah! Ah! Os tempos vão desassossegados! (MCG - 1974.03.12)
Pois é, minha linda. A guerra é muito bonita, mas que sejam outros a fazê-la. Em tempo de guerra pertencer aos quadros das Forças Armadas é pouco atractivo: há muita insegurança, um tipo arrisca-se a levar um balázio ou a ficar trôpego.
No começo da guerra [colonial] notava-se em Angola uma grande rivalidade entre os oficiais milicianos para a campanha – e os oficiais dos quadros - comodamente instalados na cidade, tratando da sua vidinha.
Entretanto, a frequência da Academia Militar e do Colégio Militar tem vindo a diminuir, criando ao Governo graves problemas para o preenchimento e substituição dos quadros das Forças Armadas, nomeadamente no Exército. Viu-se assim o Governo compelido a recrutar os elementos em falta entre os oficiais milicianos. Mediante a frequência de curos especiais os alferes e tenentes milicianos alcançavam o posto de capitão miliciano, para suprir a falta de capitães do quadro.
Mas geraram-se descontentamentos entre estes pois um miliciano conseguia alcançar o posto de capitão muito mais rapidamente. Deste modo, os oficiais subalternos do quadro boicotaram esta medida, exigindo, além disso, regalias especiais.
Por seu turno, entre os milicianos, o estado de espírito não seria muito favorável a estas discriminações. Primeiro, porque dão o corpo ao manifesto e não aceitariam privilégios especiais de outros.
Assim, o ambiente ir-se-ia deteriorando rapidamente. Desde Dezembro último iniciou-se a rebelião dos capitães (milicianos? do quadro? Ou ambos?) Uma primeira tentativa de golpe de estado, chefiada pelo General Kaulza de Arriaga, não teria obtido a adesão do general Spínola, que ocupava desde esse mês a Vice-Chefia do Estado Maior das Forças Armadas, lugar especialmente criado para ele.
Em Fevereiro ter-se-ia gorado nova tentativa de golpe de estado. Na semana passada vários capitães – quatro ou cinco foram desterrados – Macau, Timor, Braga … Os restantes capitães retiveram-nos, impossibilitando-os de cumprir as ordens superiores.
Decretado o estado de sítio – domingo a 3ª feira passadas – todos os oficiais foram obrigados a apresentarem-se nas respectivas unidades militares. 3 daqueles capitães teriam tentado abrir negociações mas foram imediatamente presos.
Entretanto os capitães teriam exigido a demissão do Presidente da República [Almirante Américo Tomás] [Note-se que o General Kaulza teria exigido, em Dezembro, a demissão do Presidente do Concelho) [de Ministros, Professor Marcelo Caetano]
Mas … os Chefes dos Estados-Maiores do Exército, da Marinha e da Aeronáutica bem como os Comandantes das Regiões Militares apresentaram-se na Assembleia Nacional onde reiteraram a sua fidelidade ao Governo. No dia seguinte a Chefia do Estado Maior das Forças Armadas foi exonerada: generais Costa Gomes e Spínola. [que não haviam aderido com um 3º oficial general ao beija-mão do que ficou conhecida como a Brigada do Reumático]
Na 6ª feira à tarde estes 2, com mais outros 3 oficiais, todos condecorados com a Torre e Espada do Valor Lealdade e Mérito (a mais alta condecoração portuguesa) compareceram na Assembleia Geral extraordinária da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar onde foram premiados com um prémio especialmente criado no ano passado, sendo apontados e ovacionados como “exemplo de 5 homens bons, dignos sucessores dos Homens Ilustres do Passado e exemplo para o futuro.”
Na madrugada de sábado, de ontem, deu-se a intentona militar, que sabes ! Segundo emissoras estrangeiras, o general Spínola encontra-se em paradeiro incerto, havendo sido presas entre 70 a 200 pessoas, para além dos insurrectos das Caldas
Claro que tudo isto até aqui não passaria de rixas entre os galos na capoeira.
Mas … convém não esquecer a origem disto tudo: a guerra em África.
Assassinado o Engº. Amílcar Cabral, em Janeiro (?) do ano passado, o general Spínola teria perdido o seu interlocutor dentro do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, de que era Secretário-Geral, Pensou-se na altura que ele tivesse sido assassinado, se não por instigação do Governo Português, ao menos da linha integracionista, contrária à autonomia (O Ultramar não se discute, defende-se!) Pensa-se também que poderia ter sido assassinado por dissidentes do PAIGC, que não concordavam com as negociações.
(…) Recorde-se que na Guiné o PAIGC inicia a guerrilha urbana, em Bissau.
Em Moçambique o Norte é dominado pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e o cobre da Rodésia deixa de ser escoado pelo Caminho de Ferro da Beira, para ser escoado pelo Caminho de Ferro de Benguela (pelo porto do Lobito) [Angola] O Governo Português desmente acusações de que forças armadas da Rodésia e África do Sul colaborem com as forças armadas portuguesas na luta contra os guerrilheiros da FRELIMO.
Os “brancos” de Moçambique, perante o agravamento da guerra, pretenderiam um governo local autónomo com a instauração dum regime racista branco de “apartheid”
Em Angola, a situação embora não sendo tão grave, reflecte os conflitos entre os interesses económicos (locais e estrangeiros) partidários dum governo local. Existe lá uma forte corrente para a instauração dum regime racista “branco”.
Segundo o “ Expresso” prevê-se uma invasão de Angola por tropas regulares da República do Congo. Entretanto as Forças Armadas em Angola teriam desmantelado o MPLA (Movimento para a Libertação de Angola, favorável a negociações) ganhando força o partido rival de Holden Roberto (racista e responsável pelos massacres no Norte de Angola em 15 de Março de 1961). A FNLA de Holden Roberto não seria favorável a negociações. Mas … o MPLA era de orientação marxista-leninista, enquanto que Holden Roberto é subsidiado pelos americanos. Daí a ameaça duma possível invasão pelos congoleses.
Entretanto há pouco tempo surgiu mais um movimento de libertação, este de S. Tomé [e Príncipe].
Nas assembleias internacionais são admitidos como observadores representantes dos Movimentos de Libertação e o Governo Português é cada vez mais isolado e pressionado para rever a sua política.
….
Pelos que lá têm interesses económicos a defender e pelos que atacam esses interesses.
Em Portugal 13 anos de guerra tiveram efeitos catastróficos na economia, comprometendo gravemente o futuro do país. A situação interna está completamente deteriorada e o país exausto, não conseguindo já a repressão calar o descontentamento geral. (MCG 1974.03.17)
O general Spínola surge com uma solução: uma federação de Estados. [o agente seria uma Junta Militar?] Assim, Marcelo e Spínola apareceriam juntos na proposta federativa – já proposta em 1962 ao Salazar [então Presidente do Concelho de Ministros], o que teria valido ao Marcelo o cair em desgraça perante o regime então vigente. Mas, eventualmente, representariam interesses opostos ao grupo do centro-esquerda e mesmo do centro [do regime]
Por outro lado o Marcelo e o Tomás também estariam em campos opostos, relativamente à evolução político-económica do regime [fascista]. Ao ser eleito [Presidente da República, em 1958, em oposição ao General Humberto Delgado, posteriormente assassinado pela PIDE, em manobra cuja responsabilidade Salazar procurou atribuir ao Partido Comunista, na clandestinidade] o Américo Tomás era da confiança de Salazar e dos interesses económicos dominantes de então, adepto dum capitalismo de pequenos comerciantes e industrias e grandes proprietários agrícolas,
Era um regime visceralmente anti-monopolista, adversário da industrialização e duma integração na Europa. Daí que estivessem voltados para o Ultramar a cujo desenvolvimento se opunha [as colónias meros fornecedores de matérias primas, desindustrializadas, mercado para escoar a produção da indústria e dos vinhos portugueses]
Mas … o tempo tudo muda e quando em 1968 o Doutor Oliveira Salazar é exonerado, a base do regime já era outra, de modo que, continuado embora o Presidente [da República] a ser o Tomás, o sucessor de Salazar é o Marcelo, o homem do compromisso que a extrema-direita aceita porque fora um dos teóricos do Salazarismo [regime corporativo, de sujeição plena do Trabalho ao Capital e aos Latifundiários] e o centro também, pelas suas pretensões liberalizantes. É aquilo a que se convencionou chamar a “Primavera Política de 1968/69”. É o tempo da “renovação na continuidade”. Mas, os salazaristas têm ainda força, e em breve o regime marcelista (em qualquer altura o Marcelo pode ser demitido pelo Tomás) acentuará a tónica da “continuidade” em desfavor da “renovação”. A chamada ala liberal é segregada [que haveria de à pressa e depois do 25 de Abril dar origem ao PPD/PSD – Partido Popular Democrático – Partido Social Democrata] e já não surge na actual Assembleia Nacional (eleita em Outubro último). O regime não ata nem desata: o mecanismo está montado de tal modo que emperrou.
Posta de lado a hipótese duma revolta popular – que não interessa de modo algum à grande burguesia – cujos privilégios seriam postos em causa – nem à pequena burguesia – que nem é nem deixa de ser e sempre teve medo dos levantamentos populares – posta de lado esta hipótese, só o Exército surgiria como o “Salvador da Pátria”.
Os interesses são contraditórios: ou a Europa ou a África. Os dois juntos é que não podem ser. Outro problema, portanto, é saber qual prevalecerá. Mas a verdade é que as teses de Spínola \não são aceites pelos movimentos de libertação. Nem a política do governo Marcelista.
Assim, a situação apresenta-se muito confusa, já que contraditórios são os interesses em jogo e praticamente nenhuma a informação.
Que significará no entanto o levantamento das Caldas? Até que ponto o Marcelo e o Spínola estão “combinados”? É difícil dizer. As forças sublevadas eram fiéis ao Governo ou não? Uma coisa parece certa: após os incidentes do início da semana passada (10 a 12) ter-se-ia encontrado uma plataforma de compromisso. As Forças Armadas dirigem-se à Assembleia Nacional e prestam prova de fidelidade ao Governo (e porque não se dirigiram ao Palácio de Belém a prestá-lo ao Pai Tomás ? [Afinal o Comandante Supremo das Forças Armadas. é o Presidente da República e não o Presidente do Concelho de Ministros] No dia seguinte os generais Costa Gomes e Spínola são exonerados [Chefe e Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas]
…
Bem, são 00h 30 m e acabei de ouvir a emissão em língua portuguesa da BBC (emissora inglesa). Segundo ela o Movimento das Caldas pretendia exigir a demissão do Presidente da República. Mas a adesão de outros quartéis fora assegurada pelo telefone. Claro que os telefonemas foram interceptados e o Governo colocado ao corrente da situação, precavendo-se convenientemente.
Esta intentona ter-se-ia seguido a uma turbulenta reunião de jovens oficiais da Academia Militar com o tenente-coronel [Almeida] Bruno [da ala de Spínola], como ele condecorado com a Torre e Espada. E premiado na Reunião do Colégio Militar atrás referida. Deste modo o Presidente da República intensificou a depuração das Forças Armadas, com inúmeras prisões, entre as quais a do Tenente. Coronel Bruno. A linha dura venceu, aparentemente, enquanto o Presidente do Concelho [de Ministros] perdeu a cartada e assiste impotente ao descalabro da sua política (nem é demitido nem pode demitir-se.
Mas .. a vitória do Pai Tomás e da extrema-direita não fará mais que acelerar o processo de desagregação do regime. Tanto mais quanto Portugal não pode aguentar por muito mais tempo a guerra em África nem é solução nem é admissível a política de “a ferro e fogo” que a ala dura das Forças Armadas pretende impor para resolver a questão, rejeitando quaisquer negociações e favorável – parece-me – a um regime racista branco, para o qual teria o apoio dos Governos da Rodésia e da União Sul Africana.
O Marcelo será, pois, neste momento, um homem arrumado: jogou e perdeu.
Mas … o processo é irreversível. O futuro dirá qual a política e quais os novos chefes. Com ou sem Spínola (que se mantém num prudente silêncio).
E por hoje chega de paleio, que já é madrugada de 3ª feira.
Já muito tempo passou desde o início desta carta. Salvo uma pequena notícia oficial comunicando a prisão de 33 oficiais – e não os 200 segundo a imprensa estrangeira- os jornais portugueses estão reduzidos ao silêncio.
Já foi tempo de ter passado um domingo em que não consegui terminar o relatório para [a cadeira de] Dinâmica de Grupos, porque encontrei a Lurdes no Arcada e a quem tive de aturar até à meia-noite. Sabe muita música, mas não me convence. Convidou-me para jantar e fomos ao cinema, com uma das hóspedes da mãe, ver um filme muito idiota e sem graça: “Sexo Nunca, Somos Britânicos”. Enfim, um domingo estragado, que me impediu também de terminar então esta carta. Mas ela aqui vai e talvez tenha mais interesse assim que as habituais, falando do estado do tempo, das horas e da música que estou ouvindo ou da paisagem que me rodeia. Que lhe parece, amiga?
Como te disse a minha mãe tenciona aproveitar as férias da Páscoa para dar uma volta – gostaria de ir a Badajoz – (e talvez mais longe, se bem conversada). Seria bom que tu conseguisses arranjar as coisas para passarmos as férias juntos, tanto mais quanto me parece que não haverá muitas oportunidades de nos vermos nos próximos tempos.
Mas … tu procederás como bem entenderes e eu farei por não te falar novamente neste assunto, nem que para isso tenha de silenciar os escritos para não haver tempestades. Do interessante passeio de 6ª feira passada falarei talvez numa próxima carta. (MCG - 1974.03.19)
Acabei de ouvir a BBC. A depuração nas Forças Armadas prossegue, mesmo entre os oficiais-generais. Os oficiais dissidentes estão a ser enviados para o Norte de Portugal, Açores e Guiné. 10 000 soldados serão transferidos de Angola para Moçambique, a juntarem-se aos 60 000 que actualmente lá se encontram, muitos dos quias se teriam tornado suspeitos.
(Os jornais da tarde um aumento de 565 mil contos para prosseguir o reequipamento extraordinário do Exército e da Aeronáutica. Prevê-se para breve uma profunda remodelação ministerial, depois da ruptura completa entre os Presidentes da República e do Conselho [de Ministros]. A extrema-direita ganhou a primeira parada do jogo. Mas … 80 países reconheceram já, desde o ano passado, a independência da Guiné-Bissau. Por seu turno os representantes dos Movimentos de Libertação foram admitidos com o estatuto de observadores na Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo para isso o apoio dos Estados Unidos, o que será uma derrota para a linha dura que actualmente tem nas mãos as rédeas do governo português. Entretanto o governo (trabalhista) inglês embargou o fornecimento de armas à África do Sul e condenou a política do governo português. A juntar a isto tudo, a BBC anunciou também que em Mafra foi geral o silêncio (recusa) dos soldados cadetes [futuros oficiais milicianos] durante o juramento de bandeira. Noutra ocasião um determinado número (que não fixei) de soldados recusou-se a embarcar para África, acabando por ser compelidos pela força das armas.
Com tudo isto o moral entre as forças armadas é muito baixo (p.ex., o Jornal Português de Economia e Finanças, advogava há semanas a instauração do serviço militar feminino obrigatório bem como a canalização para Angola e Moçambique dos emigrantes retornados). Para substituir os oficiais dissidentes e fazer face às carências prevê-se o aumento do serviço militar obrigatório.
Enfim … uma política autenticamente suicida, Interessante a forma como o deputado Homem Ferreira abordou ontem este assunto, segundo relato do discurso transcrito nos jornais. Junto te envio m recorte do “Diário de Lisboa” sobre este assunto. (MCG – 1974.03.20)
A BBC vai transmitir o seu noticiário. Enquanto não volta a Portugal vou aproveitando para fazer uma visitinha a ti.
Sempre recebi hoje a tua carta. E fiquei com curiosidade de saber o teor das conversas dos teus alunos sobre a situação política nacional nomeadamente o “revolucionário”.
Antão, sempre resolveste passar as férias connosco? Em Lisboa terás a casa da D. Alice [Quaresma, para ficares]
Acabei agora de ouvir o noticiário. Aí vai pois um resumo, como o de ontem
Segundo a Rádio Vaticano, de ontem, os bispos de Moçambique publicaram uma carta pastoral sobre a situação naquele território africano, abordando os problemas da guerra, do racismo, dos massacres e da política do Governo Português. Os jornais não falam nisso. Nem a BBC Estranho !
Teria havido mais um massacre de civis africanos pelo exército português, em 13 Janeiro último. O Alto Comando das Forças Armadas em Moçambique desmente a notícia dizendo que ignora onde fica a aldeia de Ximara (como sucedera já com a de Wiriamu) Segundo aquele Alto Comando nesse dia apenas teria havido uma operação militar de que resultaram 3 mortos entre os guerrilheiros)
Entretanto a Irmã Maria foi expulsa de Moçambique, tal como sucedera já com os Padres Brancos (de Burgos [Jesuítas, que denunciaram os massacres de Wiriamu]). Por seu turno os “europeus” pedem a expulsão do Bispo de Nampula [D. Manuel Vieira Pinto], acusado de ser muito “liberal” (e que tem denunciado a situação em Moçambique [incluindo o massacre de Mucumbura]). Este Bispo, conjuntamente com o de Tete e mais outros 6 padres italianos (em vias de expulsão) teriam sido agredidos por brancos num aeroporto de Moçambique.
O livro de Spínola não teria sido totalmente escrito pelo general, que teria contado com a colaboração do Tenente-Coronel Bruno e das SEDES (Associação de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social).
Quanto ao Marcelo, para além do apoio que teria dado à publicação, teria iniciado um apoio a organizações semi-políticas moçambicanas para tentar neutralizar a acção da FRELIMO.
Acabei de lanchar aqui no Estrela d'Ouro. Aqui ao meu lado o Alpendre estuda História Económica; o Guerreiro acabou de chegar do supermercado, onde foi aviar-se.
Dizia a BBC ontem que prosseguia o chamado "julgamento" das 3 Marias (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) autoras dum livro chamado "Novas Cartas Portuguesas” sobre problemas da mulher portuguesa, que a acusação pública considera pornográfico e ofensivo da moral e dos bons costumes. Mas uma das testemunhas de defesa, Maria Emília... , afirmou que ofensivo da moral e dos bons costumes era o facto duma mulher não poder andar na rua e transportes públicos em Lisboa (e em Évora ?) sem ouvir piropos indecorosos e ser apalpada. Referiu também as vantagens que os homens da classe alta tiram impunemente da sua posição sobre as jovens das classes inferiores.
Daqui a 10 dias terminam as aulas. Daqui até ao fim temos Técnicas de Investigação Social II (Estatística) Praticamente só deve haver exames desta cadeira.
Bem, vou até casa Gostei de receber a tua carta. (MCG - 1974.03.21)
Hoje o Marcelo fala. Vamos ver o que diz ele e se eu aguento a Conversa [em Família. Era este o nome dado às charlas televisivas na Televisão]] (MCG - 1974.03.28)
Ouviste ontem o Marcelo? É um homem perigoso, tanto mais quanto se insinua daquele modo. Quantos acreditarão nele ?
A BBC ontem só deu uma pequena notícia referente a Portugal. Em Angola (Cabinda) os guerrilheiros [do MPLA] já possuem mísseis. (MCG 1974.03.29)
Não tenho ouvido a BBC. A morte do Presidente da França levará à realização de eleições para a Presidência da República. Um opositor de peso do partido UDR (de Pompidou) será o candidato da aliança Partido Socialista-Partido Comunista, que tem vindo a ganhar cada vez maior adesão. Uma vitória do candidato destes dois partidos será um desaire para a política do actual Governo Português. (MCG - 1974.04.04)
Pois é, após uma semana muito agitada por parte das altas personalidades do regime o Marcelo fez um discurso exemplar nas suas contradições; para além disso, um tentar rebater as teses de Spínola, publicadas no seu livro “Portugal e o Futuro” – que ainda não chegou a Évora, aqui a 137 km de Lisboa. Um discurso estafado, que não engana quem dos mecanismos políticos e económicos conheça alguma coisita.
Recusado o impossível recurso a um referendo popular, restou ao Marcelo submeter-se, em gesto teatral, às decisões da Moção que os deputados Ultramarinos porão à votação amanhã. Alguns destes já foram intérpretes na Assembleia [Nacional] de correntes existentes no Ultramar tendentes à autonomia, estilo federativo (teses de Spínola) Mas, da Comissão do Ultramar, que redigiu o texto da moção atrás referida, fazem parte deputados anti-Spínola. Estou curioso de saber qual será o texto: Federação ou tudo como dantes?
Entretanto algumas altas patentes do Exército, incluindo Comandantes das Regiões Militares, reuniram-se com o Ministro do Exército. Dessa reunião estiveram ausentes outras altas individualidades das Forças Armadas, entre os quais o general Spínola, Vice-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Olha, lá vai o Marcelo a subir as escadas. Nem o Chefe [General Costa Gomes] (MCG – 1974.04.05]
A despropósito – que tal a aprendizagem com o livro do Spínola ?
Ao longo dele fala-se muito no povo e em plebiscito. Claro que haveria “uma preparação prévia”. Mas … e deixavam exprimir-se todas as “correntes de pensamento e opinião? “ Restaurariam entretanto as chamadas “liberdades”, nomeadamente de associação, reunião e liberdade de expressão e difusão do pensamento? Não o creio. E submeter-se-iam aos resultados do referendo ? Ainda mesmo se ele fosse desfavorável? Por isso desde 1928 não vão os governos portugueses em “cowboyadas” não venha por aí abaixo a revolução, que obrigue certa gente a cavar … e não propriamente batatas (Só me falta ler do livro o capítulo “Uma hipótese de estruturação política da nação” … para que tudo – inteligentemente – continue como dantes) (MCG 1974.04.10)
Apareceu-me hoje lá em casa [da D. Vitória] o Alexandre Vaz, que está de férias em Portugal. Termina a comissão militar em Angola daqui a 11 meses. Contrariamente ao que supunha por ele pouco soube da situação política em Angola (Apenas que o livro de Spínola está lá proibido, embora tivesse sido distribuído o [semanário] “Expresso” que trazia largos extractos de “Portugal e o Futuro”) (MCG 1974.04.23)
Acabei de jantar; o [Emídio] Guerreiro e eu comprámos comida no "snack" Camões e viemos de abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!), filetes de pescada (estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com ervilhas (saboroso, mas a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o Guerreiro tinha) e maçãs (que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um. Ah! Esquecia-me, como fundo musical a "Pequena Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe me deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda se bem.
A minha mãe telefonou hoje à noite. Sempre vai [regressa a Luanda] em Maio. Anteciparam o embarque, que será no dia 12, domingo. Diz que já está mais conformada e pergunta se lá vou passar as férias Ah! Ah! Ah!”
Sempre consegui terminar o trabalho de Estudos da População. Tive de trabalhar até às 5 da matina. A partir das 3 já não era senão uma máquina a escrever à máquina o que o cérebro ditava aos meus músculos. Levantei-me novamente às 9; à tarde quis dormir mas fui acordado uma hora depois pelo palrar ali das meninas minhas vizinhas e suas visitas, no quarto ao lado.
Daqui a pouco vou até ao café para dois dedos de conversa com a malta e depois venho deitar-me. Amanhã tenho de começar a estudar Estatística para resolver os exercícios de Técnicas de Investigação Social II, cuja entrega na 4ª feira condiciona minha admissão ao exame de 4 de Maio. Enfim …
Não se compreende como é possível a “Maria” continuar a dar aulas nas condições em que tem dado nos últimos tempos. Ninguém pensa também nos miúdos ? Dá saudações minhas à “Maria”. (MCG 1974.04.24)
Sem comentários:
Enviar um comentário