sábado, 16 de fevereiro de 2008

Cartas (1)

* Victor Nogueira

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Querida namorada

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Gostei de falar contigo ontem; eram uma voz e um riso bonitos. Estou tão contente - lá no fundo - por ti e pelo que tu representas que me apetece abraçar, beijar ou falar com as miúdas que se cruzam comigo que se sentam nos bancos do jardim ou ao meu lado no comboio. Mas como correria o grave risco de ir parar ao banco do hospital, ao xelindró ou ao manicómio, por atentado á moral e aos bons costumes! ... Pois é namorada, como reagiria eu (como reagirias tu) se uma mocinha (o) (como dizes) me beijasse (ou a ti) ao cruzar se comigo (ou contigo) ou tivesse gestos de ternura no breve tempo duma viagem entre duas estações? Bem sei o que muitos dizem e pensam da Lídia, lá em Évora! Elas não podem ou não devem fazê lo, para não serem tidas por destravadas, eles também não, salvo se quiserem passar por D.Juans ou marialvistas! Assim, Celeste, (para teu descanso e da autorização do "flirt") resta me olhar e ver o mundo e as pessoas com mais amor e serenidade (até quando?)

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Estou na sala de jantar da casa onde moram as minhas tias. A tarde hoje está enevoada. O sossego apenas é quebrado pelos pássaros cantando lá em baixo nas árvores que o vento agita. De vez em quando passa um carro. Ao fundo do corredor, noutra sala, a minha tia Maria Luísa ocupa se com os seus trabalhos de costura (é modista) enquanto fala com a Bela, uma miúdita da vizinhança que vem ajudá la por estar em férias e nada ter para fazer (que grande desperdício são as férias!). Ainda não vi a minha tia Esperança, pois ainda não fui a Lisboa e estes têm sido dias em que ela fica em Porto Salvo. Como Lisboa ainda fica a 20 minutos daqui (viagem de comboio) ela só cá vem jantar e dormir, apesar da farmácia de que é directora técnica ser a dois passos do Cais do Sodré. Este é um dos inconvenientes de Lisboa: está longe e tudo lá fica temporalmente longe, os amigos e os acontecimentos - apesar das facilidade de transportes - tornando os dias cansativos, pelas correrias a que nos sujeitamos e de que já estou desabituado. Que contraste com Évora, onde tudo respira lentidão e quietitude!

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Mas não é só o bulício e a azáfama constantes que se tornam cansativos. Também e ainda mais o "far niente" (nada fazer). Daqui a pouco vou até ao jardim cheio de gente estudar umas coisas, aguardar o "Diário de Lisboa" e desentorpecer as pernas e o corpo. Que isto de estar parado sem nada fazer ainda me é mais cansativo. Como diria a D.Vitória: "O sr. Nogueira é um insatisfeito". Eu acrescentaria: "porque gosto do equilíbrio". Bem, mas prometo que hoje não farei tiradas como as da carta de ontem, em que algumas passagens teriam de ser modificadas para corresponderem melhor á realidade. Consequências de escrever sob pressão!

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E afinal cheguei ao correio com 1 (um) minuto de atraso, perdendo assim a tiragem das 20 h !!! Disseram me lá que a das 22 também servia. Espero que sim.

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Mas, namorada, reparo que se não tenho cuidado passarei as horas a escrever te. Vês, efeitos de ter uma caneta ágil, (só a letra é que não prima pela legibilidade, o que também me aborrece) e de tu estares longe. Portanto vamos pôr um pouco de disciplina nisto. Vou mudar de roupa e no jardim estarei um pouco mais contigo! (Aqui o Victor prepara se para levantar se, contente beija a Celeste, com muito carinho e delicadeza - enquanto são namorados são todos atenções, o pior é depois ... ) E pouso a caneta.

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No jardim. "É palerma, a mocinha!" Só á tarde recebi a tua carta, pouco antes de sair. E foi porque resolvi lanchar antes: dois pêssegos, uma banana, um iogurte com batatas fritas que sobraram do almoço e um raspanete da Maria Luísa ... por eu não ter tido pachorra para fazer o leite em pó!) "É palerma a mocinha, namorada do Victor !" Sabes, és uma cabecinha de alho chocho! E se de vez de se deixar invadir por um mar de confusões fizesse umas pausas e intervalasse? Esperei pelo teu telefonema até ás 18 h de 2ª feira. Sem grandes esperanças, porque de manhã uma das empregadas dos CTT me confirmara a minha suspeita ao informar me que na véspera (domingo) não houvera a habitual tiragem das 22 h 30 m.

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Como não sabia da menina Celeste (febril algures na Salvada), como não sabia como reagiria ao meu pedido de namoro (as cartas iriam para Lisboa, como fora combinado) só me restava uma solução: abandonar Évora. Contrariamente ao inicialmente programado resolvi adiar a partida para o dia seguinte: duma cajadada matando dois coelhos, isto é, aproveitando a passagem da camioneta em Setúbal para uma "breve pausa" para visitar amigos, o casal Armindo Gonçalves, amigos de Luanda, e a Noémia! A tua carta estava em Lisboa, qualquer que ela fosse, e a vida continuava! Cheguei pois a Paço d'Arcos ás 23 h desse mesmo dia e pouco depois tive a confirmação oficial da nossa nova situação. 'Ta percebido, namorada! Então vá lá uma beijoca, sem rios tumultuosos e violentos!

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Ah! outro pormenor importante: não sabia que a tua amiga Chiquinha já regressara de férias; também não me seduzia pedir a um Guarda Republicano para ir chamar te para atenderes ao telefone 2ª feira á tarde para saber se havia alguma hipótese de nos encontrarmos ainda em Beja! Chamar te, ou á Teresinha ou ao teu mano António (a que propósito iria chamá los ... para perguntar da Celeste?!) Vá lá, mais uma beijoca, mocinha marinheira! Que ia morrendo afogada!

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Olha, mando te uma banda do "Diário de Lisboa". Tem montes de piada!

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Hoje está desagradável no jardim: hoje ventosos e fresco. As minhas notas de ontem, carta que não escrevi, começam: "Uma tarde estival, quente e luminosa, no jardim de Paço d'Arcos ... " Tudo o resto é praticamente o mesmo. Os carros passam velozmente além na marginal, e o Tejo é azul. As crianças correm e brincam pelas áleas e vêm se muitos triciclos e bicicletazinhas. A esplanada está cheia de gente que conversa. Além á esquerda vejo o barracão feio do cinema da vila: apenas 3 sessões semanais no verão: terças, sábados e domingos. Quero ver se em Lisboa vejo dois filmes de Orson Welles (um dos quais pela 2ª vez é um dos melhores de todos os tempos: "O Mundo a Seus Pés") e uma comédia "Trinitá, o Cowboy Insolente".

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Não é muito legível a escrita sobre os joelhos, sentado num banco do jardim. O melhor é ficar por aqui e comprar o jornal, passar pelo correio para deixar esta (hoje é 10, quando a receberás?) e regressar a penates.

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Lamento as tuas férias. Porque se Évora é o que é! ... Até 2ª feira traçarei definitivamente o meu programa de férias. Ouve lá, namorada, tu não tencionavas passar uns tempos em Lisboa, em casa duma prima tua? Porque desististe desses projectos?

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Diz me pois se podes, quando e por quanto tempo poderias vir! Se preciso fosse trarias a Emília como guarda costas.

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A vires, teria de ser até meados de Setembro. Porque só por essa altura sai o mapa de exames de Outubro, que poderá exigir a minha presença em Évora (Depende principalmente da data do exame de Demografia)

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[A Bia parece me que não chegou a telefonar me para Paço d'Arcos. Aquilo parece me que é outra rapariga que sonha ou planeia muito].

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Vou mesmo interromper. Ainda bem que te vais habituando á minha letra.

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Dá por mim cumprimentos aos teus. Um abraço á Emília. Breve lhe escreverei.

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Salut, namorada.

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Paço d'Arcos

10 AGO 72 VM

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PS. Reparo que de hoje a cinco dias escrevia te eu há um ano de Luanda, no dia da cidade. As voltas que o mundo dá. Que voltas dará até daqui a um ano?

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1 comentário:

Maria disse...

Victor:
Penso que são escritos demasiado intimos para serem comentados.
O respeito pelo sentimento destas cartas travam os comentários de qualquer pessoa.
Bj
Maria