terça-feira, 13 de maio de 2008

Na cadeia e no tribunal de Arraiolos

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* Victor Nogueira
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Ontem em Arraiolos, enquanto fazia horas aguardando as vinte, quando regressariam a casa os únicos dois inquiridos que me restavam fui visitar a cadeia lá no largo onde param as camionetas da Setubalense e fica a Câmara mais o posto da GNR, os CTT e a praça de táxis (e quiçá também da má-língua). Do largo a cadeia destaca-se pela sua torre sineira, qual igreja, e pela suas duas janelas fortemente gradeadas. Há muitos anos que no seu segundo piso flutua um pano branco, indicativo de desocupação. O sr. não sei quantos (motorista de táxi que me tem trazido a Évora, de Arraiolos ou de Santana do Campo ou S. Pedro da Gafanhoeira) apresentou-me ao carcereiro, o sr. Agostinho, um velhote forte, de cara quadrada e enrugada, respirando solidez por todos os poros. As celas são em número de quatro, grandes e frias, além do segredo, um tugúrio agora transformado em casa de banho da cela do primeiro andar (a dos pequenos delitos), todas elas de paredes larguíssimas e portas duplas, a interior de ferro, gradeada, e a exterior de madeira. Outrora os presos dormiam em enxergas, que de dia eram arrecadadas, mas uma oferta de camas de ferro pelo sr. qualquer coisa Mira e de colchas (dez, que custaram na altura mil escudos) pela esposa dele acabaram com as dormidas no chão.

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Outrora a cadeia, segundo o sr. Agostinho andava que nem um brinco ("Nem cheira a cadeia", teria dito um juiz qualquer de passagem) e os presos faziam gala disso ("Não pode ser uma cadeia, parece uma enfermaria", diriam as pessoas que da rua espreitavam pelas grades).

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Mas os tempos são outros, agora há menos delinquência porque a miséria é menor, há mais trabalho e tudo apresenta um ar de abandono, a caliça a cair, as cadeiras partidas ou rachadas, poeirentas, as colchas brancas com flores encarnadas agora manchadas ("Sabe, antigamente eram lavadas todos os anos, mas agora já há três que isso não sucede").

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Também os juízes permitem que a prisão por pequenos delitos seja remível em escudos (o que em meu entender constitui um aumento das receitas do estado e uma diminuição das suas despesas!). Apesar do respeito dos presos pelo sr. Agostinho ("Lá vem ele!" diriam ao ouvir os seus passos:"Nunca nenhum me faltou ao respeito"), houve pelo menos duas tentativas de fuga., duma ainda se vê o remendo na parede; outra foi descoberta no momento X: um pau enfiado num cobertor, um varão da cama partido ao meio servindo de alavanca, o entulho e pedras escondidos debaixo das outras camas, o buraco por outra, a espessura da pedra estava quase em nada, quando as vibrações foram detectadas por um motorista de praça que ocasionalmente se encostou à parede.

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Não me parece que quem quer que fosse se regenerasse numa cadeia assim, que até nem seria das piores. Mas a inactividade e a tristeza que emanam de toda aquela penumbra e do encerramento em quatro paredes!...

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O sr. Agostinho não sabia com quem falava, e não ficou muito convencido:"o sr. se aqui está por alguma coisa é!" "Isto deve ser um inquérito, não?". "Mas eu estou a falar-lhe com o coração nas mãos." Como não podia convencê-lo, continuei a minha visita, que terminou na sala do tribunal. Sim, que até essa ele me mostrou; a primeira em que entrei nos dias da minha vida. Ah!Ah!Ah! estas minhas visitas turísticas! (... )

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Mas,....voltemos àquilo de que estávamos falando, da sala do tribunal, à qual se ascende por um corredor azulejado e por umas escadas de pedra, no cimo das quais uma porta à esquerda nos introduz numa sala grande dividida em duas partes. Atrás bancos de encosto corridos, para o público. Uma grade, como as que outrora separavam - nas igrejas - os fiéis dos catecúmenos, separa este daquilo que eu chamaria - por comodidade - o palco - com os cacifos do juiz, do delegado do procurador da República, dos advogados e do escrivão. Em frente ao juiz um banco corrido - o do(s) réu(s) - e, um pouco ao lado, uma cadeira - para a testemunha que estiver a ser inquirida. Pelos bancos umas capas pretas (sujas) e na parede por cima do juiz um busto amarelecido representando a República. De cada lado uma porta, dando para dois cochichos cada um com uma secretária e uma estante, gabinetes já não me lembro de quem, com um aspecto desolado. Do outro lado, ao fundo da sala, uma porta de madeira dando para uma sala escura, com um escarrador e bancos corridos, um armário velho sem prateleiras, tudo com um ar muito soturno, e onde as testemunhas estão encerradas, fechadas à chave, enquanto o oficial de diligências as não chama, uma de cada vez, para prestarem declarações ao tribunal.

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Um dia destes tenho de ir até ali ao tribunal, nas portas de Moura [Évora], para assistir a um julgamento. Já agora gostava de ver uma representação ao vivo! (MCG - 1973.03.14)

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