quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Escrita - o processo criativo

* Victor Nogueira

AS PALAVRAS
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Rede com dois gumes
letras do nosso pensamento
são
os olhos que nós temos
e os seus lábios os nossos lábios (1)
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Está um domingo chuvoso, frio, cinzento! Mas as palavras não chegam a formar-se na consciência, enovelam-se, enevoam-se, liquefazem-se e a máquina [de escrever] imprime apenas nada que talvez seja muito. Ou tudo. (MLF - 1969.02.23)
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Tinha uma carta já escrita, fluente na minha mente. Chegou a hora de escrevê la e ela ruiu, as palavras escorregaram por entre os dedos, em todas as direcções, e no papel nada fica senão uma pasta informe (...) Nunca liguei á poesia. Achava-la inútil, algo inexistente para mim. Ouvi falar em rima (amor com fervor, queijo com vejo, morte com sorte), em métrica, etc. Das divisões silábicas apenas me lembro dos alexandrinos....
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Bem, como a prosa é mais fácil, com mais canelada para a direita, menos cotovelada para a esquerda, resolvi escrever epístolas por gosto e exercícios de apuramento e chamadas escritas a contra gosto e relógio. Se alguém dissesse que eu acabaria um dia por escrever frases desiguais empilhadas umas em cima das outras, a que a minha amiga [Noémia] chama poemas, eu rir-me-ia. Mas também nunca nos dias da minha vida sonhara viver em Évora e tirar um curso de sociologia. (NSM - 1969. Páscoa)
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Passa da meia noite. A hora é de silêncio e recolhimento. Contrastando com o meu estado de alma, o gira discos toca uma alegre e movimentada música espanhola. (...) A mão é muito mais lenta que o pensamento e tolhe a sua fluidez. (NID - 1971.05.26)
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Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito, do que nele se passa. Esvai-se-me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto do que não é. (NSM - 1971.12.01)
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Daqui desta terra
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Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou! (MCG - 1972.09.21)
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O discurso lógico trai a manifestação dos sentimentos; "as palavras são (redes) de dois gumes..." e o discurso lógico uma corrente que nos arrasta para onde não queremos. Um olhar, a mão que se levanta para acariciar um rosto, os dedos entrelaçados, o corpo que sentimos junto ao nosso, a simples presença, o saber-se aqui nesta sala ou na outra, não entendes que tudo isto, na sua simplicidade, diz mais e responde e/ou acalma mais interrogações que todas as palavras? É preciso saber ler para além das palavras ou não recusar essa leitura. Lembro me dum poema do Alberto Caeiro, cuja humildade e simplicidade me atraem, humildade e simplicidade perante as pessoas e as coisas que talvez nunca sejam minhas. Levanto me e vou ali á estante buscá lo. Escolho o poema que trancreverei. Hesito na escolha. Será este!
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XLV
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Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renques e o plural árvores não são coisas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
(MCG - 1972.07.14)
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A "Natureza Morta" (2) não me parece nem pessimista nem optimista; são apenas os olhos com que vejo Évora. (...) Os meus escritos permitem várias leituras, possibilitadas pela ambiguidade decorrente da disposição das palavras e frases, pela colocação da pontuação ou sua ausência. (MCG - 1972.10.20)
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No que digo ou escrevo não há senão a constatação despojada do que me parece ser a realidade. (MMA - Paço de Arcos, 1986.08.31
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De repente é como se todas as estrelas se apagassem, ficando o cansaço e esta velha vontade, por vezes renascida, de partir para longe, de apagar tudo, como se fosse possível fazê-lo para reescrever tudo de novo, rasgando o que escrevi, lixo para lançar aos quatro ventos, porque não rio nem choro nem tenho uma pedra no lugar do sentir pelo qual me deixei envolver. (...) (Setúbal, 1989.10.04)
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A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. ( Paço de Arcos, 1993.08.20 )
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De vez em quando passo aqui pelo computador e acrescento mais umas linhas de conversa. Estou cansado e com sono, mas mesmo que durma um sono seguido como acontece normalmente, isso possívelmente não me trará descanso. Isto é um círculo vicioso: a pedrada depressiva impede-me de dormir repousadamente e a falta de repouso aumenta a neura. ( Setúbal, 1993.09.08/09)
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Ao lermos uma novela ou uma história imaginamos as cenas, a paisagem, os personagens, dando a estes uma voz, uma imagem física. Por isso às vezes a transposição para o cinema revela-se-nos uma desilusão. ( Setúbal, 94.02.23 )
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Não era assim que esta carta estava escrita no meu pensamento. Aliás, no meu pensamento esta carta já teve várias formas. Mais fluidas. Variando conforme o estado de alma e o correr do tempo. Mas quando chegou a altura de fixar a fluidez do pensar, o que fica é esta pálida, imperfeita e distorcida imagem, feita de signos que se alinham em carreirinha uns a seguir aos outros. (FPG - 97.06.18).
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O computador é um instrumento precioso e fácil de utilizar para a a criação literária. É fácil emendar, erradicar completamente as palavras e as frases, sem que fiquem notas manuscritas à margem, palavras riscadas, borrões de tinta, deste modo impedindo o testemunho do nascimento e crescimento da obra até à versão final. E mesmo que se guardem várias versões do trabalho, o resultado não é o mesmo da leitura dum manuscrito ou texto dactilografado, cheio de notas e palavras riscadas e/ou encavalitadas. O estudo do processo criativo do operário das letras torna-se assim difícil, quando não completamente impossível.
(Setúbal 2007.08.16)
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1 - Poema escrito em Évora - 1971.Novembro
2 - Poema escrito em 1972.10.17, em Évora, sobre esta cidade,

2 comentários:

De Amor e de Terra disse...

E de repente (ao acabar de ler, foi como "se todas as estrelas se apagassem"...

A esrela do sofrimento, a estrela da ânsia, a estrela da solidão, a estrela da dúvida, a estrela da saudade, a do sofrimento da criação, todas...

e fiquei no escuro, completamente no escuro, de cérebro vazio e coração aos pulos!
quantas sensações conseguem causar as tuas palavras (na minha leitura)!!!

Bj Victor e boa noite.

Maria Mamede

Maria disse...

Sou fã, sim senhor.
Bj
Maria