sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Filmes Infantis

* Victor Nogueira
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No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: "Dennis, o Pimentinha", sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série "Sozinho em Casa", não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem norte-americana que a televisão passa nos programas infantis. (MMA - 1993.09.20)

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Centuriões do Século XX

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* Victor Nogueira
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O filme não tinha "garra" e, não sendo apologético dos "Centuriões do Século XX" - assim se chamava, como esses homens que no Império Romano defendiam a ORDEM (mas que ordem?) apesar da ingratidão dos restantes cidadãos. Até que vieram os Bárbaros, que deram cabo do Império ... (isto é das falas do filme!) À vol d'oiseau fala se na delinquência juvenil, assaltos, prostituição, homosexualismo, exploração de emigrantes clandestinos, desavenças familiares (vá lá, que não meteram os hippies á baila!) Pois é, mas tudo isto sem curar de saber a razão de todas aquelas mazelas.
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Numa atitude fatalista, se não pessimista, da evolução da sociedade, levando á descrença dos polícias sobre o êxito da sua missão repressiva para a manutenção da "ordem". Vê lá tu, ... por exemplo, o problema da prostituição: as mulheres não se prostituem por fatalidade. Fazem-no, sim, por razões psico-sociológicas e sociológicas: mau ambiente familiar, miséria, desenraizamento afectivo, instabilidade emocional, incultura, marginalização e isolamento na grande "cidade" ... É um problema social, de "des-organização" da sociedade, de incapacidade de relacionação das pessoas umas com as outras. (há mais, mas fiquemos por aqui). Se os homens fazem a sociedade, esta também os faz. ´
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É possível modificá la! Será moroso? É POSSÍVEL! mudando a naquilo que a desorganiza e, desorganizando-as, desorganiza também aqueles que nela habitam! Pois, sabem qual é a proposta do realizador do filme (ou quem quer que seja que tinha a "massa" para produzi lo? Sim, que na democrática América da Estátua da Liberdade o produtor é o senhor do filme, e pode adulterá lo á sua vontade, sem dizer água vai ao autor. Não será o caso, mas a história do cinema é fértil em episódios destes!)
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Pois, o bom do nosso amigo, quem quer que ele seja, pela boca do polícia velhote, descrente, vivendo para aquilo, resolve as coisas á sua maneira. A prostituição? Mas é tão fácil! Uma passagem lenta com o carro patrulha. Á segunda, quem não tivesse desandado, esquadra com ela. Nessa noite não havia "negócio" ('Tás a ver a quantidade de carros e polícias que seriam necessários. Sim, que para resultar os carros tinham que passar incessantemente, todo o dia, em todas as ruas, pelo menos nas de má nota! [Claro, se calhar lucrariam as mais "desafogadas", com carro, apartamento e telefone]. E a "mercadoria"subia de preço, porque tudo o resto continuaria na mesma.
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Mas é ilegal a polícia actuar assim (ninguém pode ser preso sem culpa formada se não em flagrante delito!) Ora o velhote resolve as coisas á sua maneira e marimba-se para os códigos e juízes! De resto, quem se queixará? Os proxenetas? Pois é ...
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É como o filme de que se falava no último boletim do Núcleo Juvenil de Cinema: "A Súbita Riqueza dos Camponeses Pobres " (...) É pois necessário que os criminosos sejam castigados, para sossego dos "príncipes" e aquietação dos que - justamente ou não - tenham a veleidade de querer perturbá lo. (MCG - 1973.04.16)

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

A Guerra dos Sexos?

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* Victor Nogueira
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Dos filmes que abordam a relação entre um homem e uma mulher há dois que aprecio sobremaneira, embora sejam de géneros diferentes. Talvez porque me identifique com os personagens masculinos, isto é, com o modo como através deles as coisas são apresentadas. Um deles, África Minha com Meryl Streep e Robert Redford, é um drama. O outro, que de novo revi há pouco com boa disposição e sonoras gargalhadas, é Um Amor Inevitável (no original When Harry met Sally), com Billy Crystal e Meg Ryan.
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O filme conta com humor a história dos (des)encontros do Harry e da Sally. No primeiro detestaram-se, porque nada tinham em comum (o que não foi o nosso caso), no segundo tornaram-se amigos (o que aconteceu connosco) e no terceiro casaram-se (o que ainda não sucedeu connosco). O primeiro encontro é numa viagem que fazem juntos, para a universidade, durante a qual Harry afirma que é impossível um homem e uma mulher atraente serem amigos porque surge sempre o desejo de sexo pelo meio. Na sequência do segundo encontro, anos mais tarde, Harry confessa a um amigo que é amigo de Sally e como não há mais nada pelo meio não precisa de mentir-lhe e podem falar e estar á vontade um com o outro. Á terceira casam-se mesmo. O filme tem cenas deliciosas. Numa delas, na fase em que eles são apenas amigos, á mesa dum restaurante Harry gaba-se do seu sucesso entre as mulheres, o que leva Sally a interrogá-lo sobre os fundamentos da sua presunção. Perante a convicção dele de que um orgasmo não se simula, ela, na cadeira, com a voz e gestos, "representa" uma cena de amor e orgasmo, finda a qual termina voltando á pose anterior como se nada se tivesse passado perante a estupefacção dos comensais e o embaraço do presunçoso. Pois é, nesta sociedade pretensamente dominada pelos homens, a estes cabe a presunção da iniciativa, mas nem sempre a conseguem fechar com chave de ouro! Em África Minha identifico-me com o modo como aquele homem e aquela mulher tentaram e em certa medida conseguiram viver o seu amor respeitando a independência de cada um deles. (xys - 1993.09.15)
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Quadros . adam-eve-1507 - A. Durer

terça-feira, 28 de agosto de 2007

O nosso partido



* Victor Nogueira

O nosso partido

é o futuro no presente construído

Na praça se demonstra

Na praça se vê

Na praça se ouve

Na praça se diz


Abril é passado

presente o deserto

esperança o futuro


fora dele deste nosso partido

sem vida é o presente

sem humanidade o futuro

vazios os campos

inóspita a cidade


Victor Nogueira 1982 1992 No comboio para o Barreiro

Quadro - The Wedding Dance - Pieter Bruegel, o Velho (1525/30-1569)


segunda-feira, 27 de agosto de 2007

VIVER POR VIVER (1967)


* Victor Nogueira

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Fui ontem ver um filme todo bonitinho, "Viver por Viver", bestialmente policrómico, cheio de grandes planos, com um Montand cínico, uma Girardot boazinha (entenda-se, com bons sentimentos) e uma americanazinha (Candide Bergen) com um sorrizito fácil e encantador. Um filme pleno de ternura e tédio. O Montandzinho engana a mulher com a maior das calmas, o desavergonhado; ela, "tadinha", quer salvar o casamento e finge que é parva e cega. O amor consegue sublimidades! Enfim, tantas vezes vai o cântaro à fonte...! Claro, o sol quando nasce é para todos - já lá dizia o Waskylcowskix - e ela manda-o ver se está a nevar e - fazendo das tripas coração - leva uma vida airada com o Henriquinho. Entretanto o Bertinho (Montand) cai prisioneiro dos vietcong - era repórter - ninguém sabe dele. Lá na longínqua América e apesar dos seus desesperados esforços para retomar a sua juventude estilo "made in USA", esquecer a Europa e o Bertinho e casar com um americano de Boston ou de Houston, a Candide (que já não é) devora os jornais em busca de notícias do ex-queridinho (e eu tão longe para poder consolá-la e extasiar-me face ao seu " Candide sourire"!). Ah!, mas as saudades da Girardot não são menores. Mas os viets, no fundo, são bons rapazes ( ... se não fosse aquela simpatia pelo Mao e aversão pelo Johnson, os melhores motores marítimos e o talco do bébé ... ) e o repórter é libertado. Roído de saudades (ai, que nostalgia!) regressa ao lar! que encontra vazio. Parte para os Alpes,"à la recherche du temps perdu", perdão, da Giradinha. Ela fá-lo passar maus bocados (a sádica ou a vingança é o prazer dos deuses) mas, oh! abismo insondável do coração humano! oh! maravilha das maravilhas! oh! paradoxo dos paradoxos! o gelo do ambiente não consegue evitar a fusão do gelo dos seus coraçõezinhos!... Tudo termina em bem: volta o disco e toca o mesmo. Ou não? Tudo isto misturado com tiradas sublímes: "Cada vez que um vencedor espezinha um vencido, é a dignidade humana que é espezinhada!" "Nós, os mercenários, somos a ponta de lança da Civilização Ocidental: defendêmo-la do comunismo!"Oh! pobres ismos" tendes um grande guarda-roupa e umas largas costas!
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O filme: "Viver por Viver"; o realizador: Claude, o tal de "Um homem e uma mulher". Desta feita abusou. Um filme recreativo: a vista delira com isso. Mas, ... só? Mais nada? Que sensaboria! Uma das cenas do filme impressionou-me bastante: aquele excerto (seria?) do jornal de actualidades cinematográficas, mostrando o brutal espancamento de africanos por tropas Congolesas. Homo homini lupus. Um sentimento, misto de raiva, desespero e impotência apoderou-se de mim. (JJF - 1968.08.17)

domingo, 26 de agosto de 2007

Mundo Phonographo - uma opinião

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Quinta-feira, Agosto 09, 2007 , Antunes Ferreira disse...
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Ainda que atrasadote, aqui fica mais um abração desta esconsa personagem que sou eu, barbudo e gordo que nem um elefante. Vai em frente, vai em frente, Victor. Concorde ou não no domínio da política contigo, só te quero felicitar por mais esta iniciativa e mais este espaço.Amigão, oxalá a persistência se mantenha e a tesura não te falte. Escrita e boa - tens. O resto é paisagem.

sábado, 25 de agosto de 2007

Um actor - Jerry Lewis

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* Victor Nogueira

O Cine Clube Universitário de Lisboa exibiu o filme "Jerry 8 3/4, ao contrário do que pensava, não era paródia ao "Felini 8 1/2"; mais uma das habilidadezinhas dos distribuidores portugueses.

O "8 3/4" conta nos a historieta dum grupo de "técnicos" dum célebre actor recém falecido que pretendem transformar um desajeitado mandarete num digno sucessor. Apesar de toda a sua boa vontade, o rapazinho "resiste" heroicamente pois é uma nulidade. No fim, quando a equipa, desiludida, o abandona, ele consegue transformar o espectáculo num retumbante sucesso e faz as pazes com a equipa arrependida e que não era interesseira, não senhor. !

Não pretendo discutir se o Jerry Lewis é ou não um génio digno de enfileirar com um Keaton, os Marx ou um Laurel. De resto, dos "clássicos" apenas conheço Chaplin. Mas nos filmes de Jerry (Enfermeiro Sem Diploma ... No Japão e nas Noites Loucas do Dr.Jerryl) o personagem principal, o herói da fita, é um pobre diabo, sedento de afecto, desajeitado e sempre metido em alhadas. Eu diria que é um herói caricatural. Faz-nos rir, mas não é um rir desopilante. A sensação que se apodera de mim é de constrangimento agravado pelo riso.

Em "As Noites Loucas do Dr. Jerryl" o herói é um professor ambicionando ser outro, mas que acaba por conseguir o amor da rapariga por ser desajeitado, horrendo mesmo, mas humano, e não por ser o desempenado e cínico D.Juan. Em "The Patsy" (Jerry 8 3/4) ele torna se um grande cómico quando é ele mesmo, sincero e honesto, e quando esquece os ensinamentos da equipa técnica, ensinamentos esses que tinham tornado célebre o falecido actor. Talvez que a mensagem dos seus filmes, a existir, seja mesmo esta: a aceitação de nós mesmos, tal como somos, perante um mundo incompreensivo; o mundo, se não todas as pessoas que nele vivem.

Creio no entanto que esta mensagem é transmitida grosseiramente, duma maneira "pesada" e, como atrás disse, indispondo nos. Um ser normal não pode sentir se à vontade, não pode rir se dos defeitos [deficiências] do próximo.

Um outro aspecto, este técnico, que me chocou, foi o mau gosto das cores. Não pretendo que todos os filmes sejam bonitinhos, verdadeiros tratados de combinação de cores como, por exemplo, "Um Homem e Uma Mulher", de Lelouch ou "Os Chapéus de Chuva de Cherburgo". Mas aquele encarnado das camisas, dos tapetes e cortinados e dos vestidos, tudo aquilo despropositado e chocante, sim, qual a finalidade? Se para aumentar o desconforto dos espectadores, então conseguiram no comigo. (APC - 1968.03.18)

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Arraiolos - Solar da Sempre Noiva


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Solar da Sempre Noiva, antigo acento de lavoura da Herdade com o mesmo nome. Situado nos termos da freguesia de Nossa Senhora da Graça do Divor, chega-se lá pela Estrada N370 que liga Évora a Arraiolos. Volumosa construção recolhida no recato de uma cerca murada e aconchegada na imensa planície a norte do burgo amuralhado de Évora. Solar edificado nos finais do século XV, durante a governação de el-rei D. João II, época em que o Alentejo era uma província frequentada assiduamente pelo poder.
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Edifício de traça manuelina mudéjar, aparenta outros acrescentos posteriores. Evidência o construído um soberbo torreão de dois pisos e encerra um vasto salão térreo entre outras divisões com rasgadas janelas de moldura em bisel.
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Cosido ao paço, existe um magnífico horto de recreio ao estilo mudéjar. Tem este solar uma auréola romântica cerzida com o nome e bem ao jeito adoçado da mitologia popular de tradição oral. Corre pelos mais velhos que a morgada donzela foi, no dia da boda e já trajada de noiva, abandonada pelo amado a quem mais amor tinha que à sua própria vida. Donzela que morreu sem nunca mais ter envergado outro traje que o da brancura nupcial. Daí que em certas noites, os que do solar se abeiram, a vêem em janela costumeira de branco vestida e cabeleira solta.
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Menos romântica mas igualmente bem madrigal, será a justificação que poderá estar na profusa existência na região de uma planta espontânea, designada cientificamente de “centinodia” e a que o gentio chama de sempre noiva.
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Sempre tive uma particular predilecção por este lugar, por ventura inclinado pela magia do drama nupcial e bradada aparição. Bastas noites porfiei em vão pela alva donzela. Talvez bem aquém estaria eu do garbo do seu amado. De vez em vez perco-me ainda pela Sempre Noiva. Paixões!
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Publicado por machede em janeiro 17, 2004 12:29 AM
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Deste meu blog dê uma saltada ao post anterior, intitulado:
Arraiolos - Cadeia e Tribunal em 1973

Arraiolos - Cadeia e Tribunal em 1973



* Victor Nogueira


Ontem em Arraiolos, enquanto fazia horas aguardando as vinte, quando regressariam a casa os únicos dois inquiridos que me restavam, fui visitar a cadeia lá no largo onde param as camionetas da Setubalense e fica a Câmara mais o posto da GNR, os CTT e a praça de táxis (e quiçá também da má-língua). Do largo a cadeia destaca-se pela sua torre sineira, qual igreja, e pela suas duas janelas fortemente gradeadas. Há muitos anos que no seu segundo piso flutua um pano branco, indicativo de desocupação.
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O sr. não sei quantos (motorista de táxi que me tem trazido a Évora, de Arraiolos ou de Santana do Campo ou S. Pedro da Gafanhoeira) apresentou-me ao carcereiro, o sr. Agostinho, um velhote forte, de cara quadrada e enrugada, respirando solidez por todos os poros. As celas são em número de quatro, grandes e frias, além do segredo, um tugúrio agora transformado em casa de banho da cela do primeiro andar (a dos pequenos delitos), todas elas de paredes larguíssimas e portas duplas, a interior de ferro, gradeada, e a exterior de madeira.
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Outrora os presos dormiam em enxergas, que de dia eram arrecadadas, mas uma oferta de camas de ferro pelo sr. qualquer coisa Mira e de colchas ("dez, que custaram na altura mil escudos") pela esposa dele acabaram com as dormidas no chão. Outrora a cadeia, segundo o sr. Agostinho, andava que nem um brinco ("Nem cheira a cadeia", teria dito um juíz qualquer de passagem) e os presos faziam gala disso ("Não pode ser uma cadeia, parece uma enfermaria", diriam as pessoas que da rua espreitavam pelas grades). Mas os tempos são outros, agora há menos delinquência porque a miséria é menor, há mais trabalho e tudo apresenta um ar de abandono, a caliça a cair, as cadeiras partidas ou rachadas, poeirentas, as colchas brancas com flores encarnadas agora manchadas ("Sabe, antigamente eram lavadas todos os anos, mas agora já há três que isso não sucede"). Também os juízes permitem que a prisão por pequenos delitos seja remível em escudos (o que em meu entender constitui um aumento das receitas do estado e uma diminuição das suas despesas!).
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Apesar do respeito dos presos pelo sr. Agostinho ("Lá vem ele!" diriam ao ouvir os seus passos:"Nunca nenhum me faltou ao respeito"), houve pelo menos duas tentativas de fuga, duma ainda se vê o remendo na parede; outra foi descoberta no momento X: um pau enfiado num cobertor, um varão da cama partido ao meio servindo de alavanca, o entulho e pedras escondidos debaixo das outras camas, o buraco por outra, a espessura da pedra estava quase em nada, quando as vibrações foram detectadas por um motorista de praça que ocasionalmente se encostou á parede.
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Não me parece que quem quer que fosse se regenerasse numa cadeia assim, que até nem seria das piores. Mas a inactividade e a tristeza que emanam de toda aquela penumbra e do encerramento em quatro paredes!...
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O sr. Agostinho não sabia com quem falava e não ficou muito convencido:"o sr. se aqui está por alguma coisa é!" "Isto deve ser um inquérito, não?". "Mas eu estou a falar-lhe com o coração nas mãos." Como não podia convencê-lo, continuei a minha visita, que terminou na sala do tribunal. Sim, que até essa ele me mostrou; a primeira em que entrei nos dias da minha vida. Ah!Ah!Ah! estas minhas visitas turísticas! (... )
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Mas,....voltemos àquilo de que estávamos falando: da sala do tribunal, à qual se ascende por um corredor azulejado e por umas escadas de pedra, no cimo das quais uma porta à esquerda nos introduz numa sala grande dividida em duas partes. Atrás bancos de encosto corridos, para o público. Uma grade, como as que outrora separavam - nas igrejas - os fiéis dos catecúmenos, separa este daquilo que eu chamaria - por comodidade - o palco - com os cacifos do juíz, do delegado do procurador da República, dos advogados e do escrivão. Em frente ao juíz um banco corrido - o do(s) réu(s) - e, um pouco ao lado, uma cadeira - para a testemunha que estiver a ser inquirida. Pelos bancos umas capas pretas (sujas) e na parede por cima do juíz um busto amarelecido representando a República. De cada lado uma porta, dando para dois cochichos, cada um com uma secretária e uma estante, gabinetes já não me lembro de quem, com um aspecto desolado. Do outro lado, ao fundo da sala, uma porta de madeira dando para uma sala escura, com um escarrador e bancos corridos, um armário velho sem prateleiras, tudo com um ar muito soturno, e onde as testemunhas estão encerradas, fechadas à chave, enquanto o oficial de diligências as não chama, uma de cada vez, para prestarem declarações ao tribunal.

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Um dia destes tenho de ir até ali ao tribunal, nas portas de Moura [Évora], para assistir a um julgamento. Já agora gostava de ver uma representação ao vivo! (MCG - 1973.03.14)
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Foto: Jorge Correia Santos - Arraiolos - Solar da Sempre Noiva - janela manuelina

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A súbita riqueza dos camponeses pobres

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* Victor Nogueira
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Com uma assistência relativamente reduzida foi projectada na 4ª feira passada o filme "A Súbita Riqueza dos Pobres Camponeses", narrando as relações de poderio político e religioso exercido sobre os camponeses que cometem um assalto a um carro transportando o produto de impostos e as consequências que advêm para os autores de tal assalto, quando descobertos pela justiça: a pena capital, após o arrependimento e remorsos de todos salvo um, que afirma querer morrer como um homem, apesar de todas as pressões que sobre ele se exercem. (Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Boletim 1973.Abril)

É como o filme de que se falava no último boletim do Núcleo Juvenil de Cinema: "A Súbita Riqueza dos Camponeses Pobres ". Os tipos assaltaram a carroça dos impostos extorquidos pelo Príncipe para o faustoso casamento da princesa. Os camponeses eram pobres e não podiam pagar impostos?! E então, a princesa deixaria de casar se faustosamente, como convinha á sua condição? Lá estava o juiz inteligente, que descobre os "miseráveis" assaltantes, que alguns até se denunciam para ver se salvam a pele! Que a vida, apesar de tudo, é a única certeza. Mesmo que miserável! E exigem as autoridades e os padres o arrependimento público de todos - condenados á morte para não morrerem de fome - E aqui, o realizador deste filme, propõe outra leitura crítica da realidade, pela boca de um dos padres: desde Lutero, a religião está ligada ao poder civil, é o seu sustentáculo. [Por oportunismo dos príncipes alemães, Lutero teria proclamado aquilo que desde Constantino a Igreja Católica tem como princípio de actuação. ] É pois necessário que os criminosos sejam castigados, para sossego dos "príncipes" e aquietação dos que - justamente ou não - tenham a veleidade de querer perturbá-lo]. (MCG - 1973.04.16)

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NOTA - O Centro de Estudos e Animação Cultural, sediado na Figueira da Foz, tinha vários núcleos de cinema espalhados pelo país, onde eram projectados filmes seleccionados. Apósa sua projecção o animador (um Padre da Figueira da Foz) provocava a interpretação e o significado do filme, quer quanto ao seu conteúdo e objectivo, quer quantos aos aspectos relacionados com oo significado das imagens, ensinando assim a não fazer uma leitura linear dum filme e, por extensão, da sociedade. O CEAC enviava para cada núcleo material informativo para localmente ser elaborado um boletim local, distribuido na sessão, para servir de introdução ao debate. Os debates eram animados e por vezes controversos, essencialmente constituídos por estudantes, muitos do ISESE.

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Em Luanda fora sócio do Cine Clube Infantil de Luanda, depois ascendi ao Cine-Clube de Luanda e em Lisboa fui sócio do Cine Clube Universitário de Lisboa. Em Évora não havia qualquer Cine-Clube, apenas estas sessões ou cursos culturais dados por professores do Liceu, passeios histórico culturais organizados pelo Túlio Espanca ou sessões culturais isoladas organizadas pela Sociedade Operária e Recreativa Joaquim António de Aguiar.

Victor Nogueira

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Notas Soltas



Neste momento ouço um disco da Rita Olivais. As músicas são calmas, repousantes. Parece que os sons musicais vão caindo ou talvez brotando de alguma saída. Os poemas, quanto a mim, nada de especial têm. Mas alguns dos versos, a forma como representam as ideias, são, a meu ver, felizes. E a música valoriza os bastante.


O rádio transmite neste momento a valsa O Danúbio Azul [de J.Strauss]. E eu deixo me levar na onda dos seus acordes, vogando liberto deste quarto deserto. Mas a valsa terminou e alguém pediu um disco dum tipo qualquer que pede à querida que relembre os momentos felizes, para que ele possa esquecer todo o seu amargor. É o programa do Matos Maia: Quando o Telefone Toca. A malta telefona, repete uma frase publicitária, pede um disco e, frequentemente antes de desligar, pergunta: "Posso dizer o meu nome?" E ficam todos felizes da costa ! ... Pobres pessoas que se contentam com tão pouco! (ASV - 1969.02.29)


Vivaldi é um compositor muito agradável de ouvir se. A sua música é sonora, alegre, colorida! (NSF - 1969.12.12.)


A tarde cai e do gira-discos evolam se as notas da "Dança Macabra", que de macabra nada tem. (NSF - 1970.05.17)


A tarde está tristonha. Dos alto-falantes do gira discos saiem as notas da "Rapsódia Húngara", de Liszt. Não há dúvida que o piano é um instrumento agradável de ouvir. E a Rapsódia Húngara nº 6?! Dá uma sensação de afirmação persistente, que nunca se quebra. Mas uma das minhas composições preferidas é o "Concerto para piano, nº 1", de Tchaikowski. (NSF - 1970.03.21)


Como sempre ouço música. Desta feita o meu amigo Vivaldi e os seus concertos, que têm algo de primaveril, recordando bosques e pássaros e riachos. (NID - 1971.04.05)


Bach no gira discos: a calma e a harmonia do velho Johann Sebastian. O turbilhão que é o meu espírito talvez se acalme com ele. Rios tumultuosos sobem dentro de mim. Eles preferiam Zorba do compositor Mikis Theodorakis (1) e o delírio até à exaustão: descansar o cansaço.


Bach (Johann Sebastian)é agora um hino à alegria. Se fosse traduzir por imagens o que ele me desperta falaria de flores cujas pétalas se abrem lentamente, ao retardador, de qualquer coisa de esvoaçante, de saltitante, duma sensação de leveza. Bach permitiu que se rompessem os diques feitos das recusas, das negações, das violências destes dias de exames, calor e frustração. (MCG - 1972.07.14)


Estou ouvindo música assassinada, isto é, música clássica adaptada e interpretada por um tal Waldo dos Rios (o tal do "Hino à Alegria") e sua orquestra. (1975.06.29)


Ali no gravador canta o cantor Zeca Afonso, que tinha uma voz muito bonita e diversificada. E ao mesmo tempo fico triste com elas (canções), porque me fazem lembrar o tempo do fascismo, quando havia esperança de lutar e conseguir um mundo melhor, sem guerra, nem miséria, nem fome, mas onde houvesse alegria, liberdade e paz. (SNS - 1987.04.26)


No gravador o Paulo de Carvalho canta Olá, como vais?, depois de se ter calado de novo a Luísa Basto, cuja voz me comove imenso, ainda mais que a da Nana Mouskouri ou da Joan Baez. Gosto de ouvir o Paulo de Carvalho. (MCS - 1989.09.24/26)


Ouço o Nino Rossi. Gosto muito da música de trompete. (MMA - 1993.09.12)


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1 - Do filme Zorba, o Grego.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Concerto nº 1 para piano, de Tchaikowski

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* Victor Nogueira
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Ouço o Concerto nº 1 para piano, de Tchaikowski. Os sons desprendem se em cavalgada, saiem do piano pelo alto-falante, umas vezes de mansinho, outras violentamente, elevam se, envolvem nos, penetram em nós e arrebatam nos. Neste momento os violinos dialogam com o piano, tentam impor se lhe, este assemelha se a um riachozito saltitante. A voz daqueles eleva se, tentam emudecê lo. Os violinos perdem a sua delicadeza, tornam se autoritários. Abafam o piano, o frágil, quem diria, piano! Veio a calma. Lentamente, a medo, uma flauta tenta quebrar o silêncio. Outras vozes vão se lhe juntando. Violinos e piano restabelecem o diálogo, secundados por outros elementos. Há uma quietude no ambiente. Uma voz grave, que não identifico, surge. O piano saltita pelo riacho, de pedra em pedra, apressa se, corre ligeiramente pelos prados. Os outros seguem no. Os sons misturam se, elevam se em cascata. O diálogo repete se serenamente, em espiral. Termina mais uma cena.
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Silêncio. Violência. Brusquidão. Violinos e piano defrontam se de novo. Implacavelmente o piano tenta impôr-se. Consegue, com alguma luta. Os violinos aceitam a derrota e rendem lhe homenagem. Ele aceita a do alto da sua vitória. Os sons ora dialogam, ora competem entre si. Os violinos são os árbitros. Parece que nada mais pode deter o piano, soltito, com ternura, com delicadeza, umas vezes, com altivez, outras. Ah! os outros silenciaram no. Mas ele debate se, liberta se, corre, surdo à majestade dos violinos. Está sozinho. É perseguido, tenta fazer se ouvir. Mas é tarde ! Este final soberbo, empolgante, arrebatador ! (NSM - 1969.01.23)

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Dois filmes sobre o Amor

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* Victor Nogueira
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Nas minhas idas a Lisboa, acabadas as reuniões, vou até ao cinema. Gosto de ir às sessões do fim de tarde. Duma das últimas vezes gostei muito da Idade da Inocência: um filme muito bonitinho, de Martin Scorcese, mas duma extrema violência, passado na alta sociedade nova iorquina da passagem do século. Sob o manto diáfano das boas maneiras e dos sorrisos, a extrema violência da hipocrisia e das convenções sociais, da escolha da segurança e do bem-estar em detrimento da loucura do amor e da paixão.
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Outro filme que vi foi M.Butterfly. A Madame Butterfly é uma ópera que canta os amores dum ocidental por uma japonesa, que se suicida quando aquele a abandona, comoventemente para o público ocidental. Com base nisso, o filme narra a paixão (verídica) dum diplomata francês (interpretado por Jeremy Irons) pela intérprete de M.Butterfly no Teatro de Pequim. E o que parecia uma grande paixão, iniciada na China e prosseguida em Paris, anos mais tarde, não passaria duma sórdida história da paixão e degradação dum homem apaixonado por outro homem, ambos presos e condenados por espionagem.
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Claro que uma leitura linear pode levar-nos a perguntar como pode um diplomata desconhecer que na China os papéis femininos eram interpretados por homens (como aliás na Europa, nos tempos de Shakespeare ou de Gil Vicente) ou como pode um homem manter uma relação amorosa com uma mulher (afinal homem) que simula uma gravidez ( que implica a existência de relações sexuais ) sem que alguma vez durante anos o suspeite? (Aliás caso semelhante teria acontecido em Portugal com a história da generala).
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Mas é o próprio francês que nos dá a resposta, quando afirma que se apaixonou não por um homem, mas sim por uma mulher criada por um homem (e quem melhor que um homem pode saber o que um homem pretende duma mulher, perguntar-se-á? Ou, na mesma ordem de ideias quem melhor que uma mulher para saber o que uma mulher espera de um homem? ). E no fim é o francês que se suicida, num acto teatral, travestido de Madame Buterfly, enquanto o espião chinês é deportado para a China).
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Afinal todo o amor (ou a paixão?) não será senão uma encenação, uma ilusão dos sentidos, uma elaboração mental, uma construção ( social ? ) que em certa medida a sabedoria popular expressa em ditos do género O amor é cego ou Quem o feio ama, bonito lhe parece ?! O que me levaria ao programa do Júlio Machado Vaz, Sexualidades, que já não via há muito tempo, ontem dedicado ao namoro e ao casamento ou ajuntamento, ao (des)conhecimento das pessoas, aos papeis masculinos e femininos, com filhos, filhas e algumas mães e nenhum pai. Por sinal todas as mães presentes (nenhuma divorciada ou solteira) com ausentes mas compreensivos maridos.
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É impressionante como a maioria dos homens e das mulheres (esposas e mães incluídas) se educam mutuamente, não para a liberdade e o respeito mútuo, não para a entreajuda e a solidariedade, mas para a negação disto tudo. Aqueles seriam pais e filhos diferentes da maioria, apesar de tudo.
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É difícil ser diferente, querer construir uma relação à margem das convenções sociais, que não libertam mas aprisionam. (MMA - 1993.09.20)

domingo, 19 de agosto de 2007

Um Filme: A Bíblia

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Vou ver "Bíblia "? Vou, não vou ... Quando entrei já Deus ia no 3º dia. O filme desiludiu me imenso. A criação do mundo é qualquer coisa de fantástico, difícil de conceber. Tudo muito verdinho, muito limpinho. E o Adão e a Eva, tão lindos, tão amorosos, tão lourinhos, eles que pouco diferentes seriam dos macacos. O Caim era feio, não se barbeava com Gilette como o Abel. E o Noé? Um simplório, tímido, a dar palmadinhas nos tigres, nos avestruzes, a dar o leitinho aos hipopótamos. Mesmo a voz de Deus nada tinha de solene, de majestosa ! Muitas passagens importantes nem sequer são citadas. A Bíblia é algo que não pode ser transposto para o cinema. A sua linguagem é quase sempre figurada, obscura. É algo que cada um de nós imagina e sente ao lê la. Transplantá la para o cinema é ridicularizá la, identificar Adão com o actor Xis, Sara com a actriz épsilon. E ficamos desiludidos. O filme é muito parado e fez me sono. Não havia meio de aparecer o "FIM". Lá apareceu às 18 h e 30 m. (1) (MEB - 1966.12.12)
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1 - "Estive a ler o "Genesis" e cheguei à conclusão que o filme "A Bíblia" é fiel ao livro, embora não cite algumas passagens, como por exemplo a embriaguez de Noé. (...) Será sempre uma deturpação dos textos bíblicos - refiro me ás imagens, dado o seu carácter comercial" (MEB - 1966.12.16)

sábado, 18 de agosto de 2007

Um filme: S. Francisco de Assis, de Liliana Cavani

* Victor Nogueira
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Ontem a RTP na sua noite de cinema transmitiu o filme italiano "S.Francisco de Assis", realizado por Liliana Cavani. O apresentador comparou-o ao "Evangelho segundo S.Mateus", de Piero Paolo Pasolini, premiado pelo Office Catholique International du Cinema (?) - OCIC - Este último filme, cinematização daquele Evangelho, caracteriza-se pela rudeza e crueza das suas imagens e cenas. Os seus personagens são gente do povo: não são bonitinhos, como Adão e a Eva da "Biblia". Este realizador é comunista, e há pouco tempo viu galardoado por aquele organismo um outro filme seu, o que levantou uma onda de protesto por parte de determinado sector dos católicos!
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Mas retomemos o fio à meada. Voltemos ao "S.Francisco de Assis" . Após uma juventude despreocupada, Francisco resolve despojar-se de todos os seus bens materiais e viver segundo o desprendimento evangélico. Em breve se juntam a ele dois outros homens. A sua vida miserável, o seu deprendimento dos bens materiais, o escrupuloso respeito pelos preceitos evangélicos -"Vai, vende tudo o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos Céus; depois vem e segue-me." e "Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou de beber, nem quanto ao vosso corpo com que haveis de vestir. (...) O Vosso Pai Celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o seu reino e a sua justiça, e tudo o que mais vos será dado por acréscimo. Não vos inquieteis, portanto, com o dia de amanhã.", tudo isto, como escrevia eu, escandaliza a hierarquia da igreja, ameaçada pela proliferação de heresias como a dos Albigenses. Mas não só a hierarquia; os leigos, demasiado realistas e comprometidos com os bens materiais, fazem chacota deles. Estou a lembrar-me daquela cena em que Franscisco envia os seus companheiros em diferentes direcções para pregarem a boa nova.
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Rufino terá que falar na Sé. Balbucia, suplica que seja enviado outro em seu lugar, pois não sabe falar e tem vergonha de fazê-lo em frente aos seus familiares e amigos que abandonou para seguir Franscisco. Este, para humilhá-lo pelos seus escrúpulos, ordena-lhe que vá, ... apenas de calções. A medo, entra na igreja, atravessa a multidão atónita e dirige-se para o altar. A assembleia começa a vaiá-lo. Cada vez mais constrangido, perturbado pelo clamor e pela chacota crescentes, não consegue senão repetir, quase inaudivelmente "Cristo disse: Amai-vos uns aos outros ..." Como são despreziveis os homens com a sua miserável tacanhez de espírito, a sua estupidez, a sua falta de caridade, a sua superioridade farisaica!
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O número dos adeptos de Francisco aumenta mais e mais e os problemas também. São já tantos que este desconhece muitos deles. Incapazes de aceitarem a total renúncia de bens e cuidados materiais, eles criticam-no frequentemente, mesmo quando ele afirma não ser nada de transcendente o que propõe: viverem, voluntáriamente, como a esmagadora maioria dos seus semelhantes, que nada possuíam e viviam miserávelmente. Há aqui uma situação flagrantemente semelhante à do mundo dos nossos dias, em que o número de miseráveis suplanta, de longe, o dos opulentos. Pretendem uma renovação da ordem, a escritura de novas regras, "onde esteja escrito o que devem fazer e o que devem deixar de fazer". E Francisco não consegue convencê-los de que não é necessário que os doutores as escrevam porque já as possuem: o Evangelho.
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Há em Francisco uma constante preocupação pela vivência da doutrina cristã, uma vivência real, traduzida em acções, em modos de vida. Na sequência daquela cena que atrás transcrevi, Francisco, também em calções, entra na igreja, dirige-se para junto de Rufino. Mas este está demasiado perturbado. Francisco, olha á sua volta (o pandemónio é indescretível) apodera-se dum crucifixo e coloca-o junto a Rufino. O pandemónio reduz-se cada vez mais, transforma-se num múrmúrio e esvai-se. Francisco, então, inicia um àspero discurso no qual critica todos aqueles que se prostam e reverenciam um pedaço de madeira enquanto, numa atitude pouco caridosa e fraterna, apupam um semelhante seu que lhes vai falar da Palavra de Deus.
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Em todo o filme transparece uma crítica contra a inautenticidade da aplicação do Evangelho por parte dos fiéis e da hierarquia, contra a falta de confiança nos cuidados da Providência Divina, contra a vassalagem daqueles "homens de pouca fé" a dois senhores diferentes. (...) (NSF - 1968.10.05)
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NOTA ACTUAL - O franciscano Pe. Melícias e outros altos membros da hierarquia católica, teriam continuado na Ordem ou na Igreja, se por acaso Francisco de Assis regressasse hoje? Ou seria considerado louco, porventura um subversivo, talvez mesmo um terrorista, um «vermelho» a abater, se a excomunhão não fosse suficiente? A resposta é vossa !

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Sobre o cinema

* Victor Nogueira
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Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são.
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(excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973)

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Eugénio de Andrade

* Victor Nogueira
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Disse um dia destes que relera com emoção um poeta que é o Eugénio de Andrade Dou comigo a relê-lo com uma certa tristeza. Porque afinal muitos dos poemas do Eugénio de Andrade expressam não a plenitude da alegria do amor alcançado mas a nostalgia do que se perdeu ou não alcançou.
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A propósito, noutra ocasião, por lapso, escrevi "Prefiro o amor á amizade ... " quando o que deveria ter saído seria "Prefiro a amizade ao amor". Mas hoje não me apetece dissertar sobre este tema.
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(Setúbal, 1993.09.25/26)

Escrita - o processo criativo

* Victor Nogueira

AS PALAVRAS
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Rede com dois gumes
letras do nosso pensamento
são
os olhos que nós temos
e os seus lábios os nossos lábios (1)
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Está um domingo chuvoso, frio, cinzento! Mas as palavras não chegam a formar-se na consciência, enovelam-se, enevoam-se, liquefazem-se e a máquina [de escrever] imprime apenas nada que talvez seja muito. Ou tudo. (MLF - 1969.02.23)
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Tinha uma carta já escrita, fluente na minha mente. Chegou a hora de escrevê la e ela ruiu, as palavras escorregaram por entre os dedos, em todas as direcções, e no papel nada fica senão uma pasta informe (...) Nunca liguei á poesia. Achava-la inútil, algo inexistente para mim. Ouvi falar em rima (amor com fervor, queijo com vejo, morte com sorte), em métrica, etc. Das divisões silábicas apenas me lembro dos alexandrinos....
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Bem, como a prosa é mais fácil, com mais canelada para a direita, menos cotovelada para a esquerda, resolvi escrever epístolas por gosto e exercícios de apuramento e chamadas escritas a contra gosto e relógio. Se alguém dissesse que eu acabaria um dia por escrever frases desiguais empilhadas umas em cima das outras, a que a minha amiga [Noémia] chama poemas, eu rir-me-ia. Mas também nunca nos dias da minha vida sonhara viver em Évora e tirar um curso de sociologia. (NSM - 1969. Páscoa)
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Passa da meia noite. A hora é de silêncio e recolhimento. Contrastando com o meu estado de alma, o gira discos toca uma alegre e movimentada música espanhola. (...) A mão é muito mais lenta que o pensamento e tolhe a sua fluidez. (NID - 1971.05.26)
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Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito, do que nele se passa. Esvai-se-me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto do que não é. (NSM - 1971.12.01)
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Daqui desta terra
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Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou! (MCG - 1972.09.21)
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O discurso lógico trai a manifestação dos sentimentos; "as palavras são (redes) de dois gumes..." e o discurso lógico uma corrente que nos arrasta para onde não queremos. Um olhar, a mão que se levanta para acariciar um rosto, os dedos entrelaçados, o corpo que sentimos junto ao nosso, a simples presença, o saber-se aqui nesta sala ou na outra, não entendes que tudo isto, na sua simplicidade, diz mais e responde e/ou acalma mais interrogações que todas as palavras? É preciso saber ler para além das palavras ou não recusar essa leitura. Lembro me dum poema do Alberto Caeiro, cuja humildade e simplicidade me atraem, humildade e simplicidade perante as pessoas e as coisas que talvez nunca sejam minhas. Levanto me e vou ali á estante buscá lo. Escolho o poema que trancreverei. Hesito na escolha. Será este!
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XLV
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Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renques e o plural árvores não são coisas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
(MCG - 1972.07.14)
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A "Natureza Morta" (2) não me parece nem pessimista nem optimista; são apenas os olhos com que vejo Évora. (...) Os meus escritos permitem várias leituras, possibilitadas pela ambiguidade decorrente da disposição das palavras e frases, pela colocação da pontuação ou sua ausência. (MCG - 1972.10.20)
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No que digo ou escrevo não há senão a constatação despojada do que me parece ser a realidade. (MMA - Paço de Arcos, 1986.08.31
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De repente é como se todas as estrelas se apagassem, ficando o cansaço e esta velha vontade, por vezes renascida, de partir para longe, de apagar tudo, como se fosse possível fazê-lo para reescrever tudo de novo, rasgando o que escrevi, lixo para lançar aos quatro ventos, porque não rio nem choro nem tenho uma pedra no lugar do sentir pelo qual me deixei envolver. (...) (Setúbal, 1989.10.04)
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A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. ( Paço de Arcos, 1993.08.20 )
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De vez em quando passo aqui pelo computador e acrescento mais umas linhas de conversa. Estou cansado e com sono, mas mesmo que durma um sono seguido como acontece normalmente, isso possívelmente não me trará descanso. Isto é um círculo vicioso: a pedrada depressiva impede-me de dormir repousadamente e a falta de repouso aumenta a neura. ( Setúbal, 1993.09.08/09)
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Ao lermos uma novela ou uma história imaginamos as cenas, a paisagem, os personagens, dando a estes uma voz, uma imagem física. Por isso às vezes a transposição para o cinema revela-se-nos uma desilusão. ( Setúbal, 94.02.23 )
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Não era assim que esta carta estava escrita no meu pensamento. Aliás, no meu pensamento esta carta já teve várias formas. Mais fluidas. Variando conforme o estado de alma e o correr do tempo. Mas quando chegou a altura de fixar a fluidez do pensar, o que fica é esta pálida, imperfeita e distorcida imagem, feita de signos que se alinham em carreirinha uns a seguir aos outros. (FPG - 97.06.18).
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O computador é um instrumento precioso e fácil de utilizar para a a criação literária. É fácil emendar, erradicar completamente as palavras e as frases, sem que fiquem notas manuscritas à margem, palavras riscadas, borrões de tinta, deste modo impedindo o testemunho do nascimento e crescimento da obra até à versão final. E mesmo que se guardem várias versões do trabalho, o resultado não é o mesmo da leitura dum manuscrito ou texto dactilografado, cheio de notas e palavras riscadas e/ou encavalitadas. O estudo do processo criativo do operário das letras torna-se assim difícil, quando não completamente impossível.
(Setúbal 2007.08.16)
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1 - Poema escrito em Évora - 1971.Novembro
2 - Poema escrito em 1972.10.17, em Évora, sobre esta cidade,

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

CANTAI OLIVAIS, CANTAI DE ALEGRIA

* Victor Nogueira
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Oh! Mil-Sóis, teu aspecto bem cativa;
O andar, o sorriso radiante,
Doce, valerosa como diamante,
Que pena tu pareceres tao altiva.
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Pode a tristeza andar-me fugitiva
Se tu, trigueira, de ar tão sonante,
Me pões em terra, mal esvoaçante,
Sem por isso ficares pensativa?
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Há bem grande alegria se te vejo
Nesta minha sala, mesmo calada,
Com teu jeito manso e delicado.
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Céus e terra cantam vero desejo
De me convidares p'ra jantarada,
Com fogo mal preso, estralejado.
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1989

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Um homem na Lua


* Victor Nogueira
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Ontem um bêbado abordou me quando via os livros na montra da Livraria dos Salesianos [Évora]. Queria saber qual era a melhor história que ali estava. Ou a maior ? A de todo o mundo! De todos os tempos. Que todos aqueles livros eram mentiras. Para as pessoas comprarem pensando serem verdades. Era a máquina! Se eu acreditava que o homem tinha ido à Lua, se eu vira com os meus olhos. Que os jornais e os livros só diziam mentiras. Que nenhum homem pudera ter ido à Lua porque ele não vira. E que eu tinha sido enganado pelos jornais. Era mentira, talvez tivessem ido, mas tinham morrido todos. Que isso dos submarinos andarem debaixo de água era diferente: era a Terra.

Quanto pagaria eu para ele me contar uma história daquelas, vinda do fundo do coração? ( E vai daí, faz um gesto como que proveniente das profundezas do mesmo mas, ou pela bebedeira, ou lá porque fosse, o gesto iniciou-se baixo demais e não pude deixar de comentar com a minha habitual ironia: "O seu coração está baixo demais!". )

Quis saber o que eu fazia - se era escritor e já escrevera o meu livro - e não acreditava que eu vivesse do ar e do vento. Enfim, que se tivesse 25 anos como eu estava mas é em Lisboa, que isso sim! E lá se ia agitando desequilibradamente o velho (de 57 anos), num asilo, convidando-me (ou convidando-se) para um copo ali na taberna, beata ao canto da boca com um grande morrão e deitando perdigotos como nuvem rota em dia de inverno.

Mas nem queiram saber a insistência com que ele duvidava da ida dos homens à Lua. (MCG - 1972.10.23)
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NOTAS
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Tenho mais três histórias um pouco semelhantes. Tivemos um criado negro em Luanda, o Fernando, que se dizia filho dum soba, no sul de Angola, para onde voltaria para suceder ao pai quando este morresse. Pois o Fernando não acreditava que houvesse barcos tão grandes que pareciam hotéis, com quartos, salas de comer e de estar, cozinhas, piscina, etc. «Não, o menino Victor está a enganar-me», respondia teimosamente. Para ele, barcos eram apenas os dongos ou canoas, os «gasolinas» com motor fora de borda como o dos meus pais ou as traineiras, pois nunca tinha entrado num dos paquetes ancorados no porto de Luanda.
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As outras duas foram passadas com a Celeste, a mãe dos meus filhos, que era professora do ensino primário. 


Uma vez foi «desterrada» para dar aulas num monte que era uma aldeia, o Monte da Arouca, onde se chegava por uma estrada iniciada ao pé do Monte da Barrosinha, ao longo do rio Sado, intransitável em tempo de chuvas. O outro caminho era tomado mais adiante, chegando-se à Arouca (que era na altura a Unidade de Produção Agrícola Soldado Luís - morto no ataque aéreo ao RALIS em 11 de Março de 1975). Este caminho era um emaranhado de trilhos, como sabe quem já transitou pelo Alentejo, com pontos de referência memorizados para não nos perdermos). O avio era feito na aldeia (Vale de Guiso), defronte ao monte, sendo o Sado atravessado de barco, gritando-se para que da outra margem nos viessem buscar. Era aí que também se apanhava o taxi para a vila. Pois os miúdos da Celeste foram uma vez à vila (Alcácer do Sal) e ficaram boquiabertos ao verem um comboio, um autêntico monstro para eles.
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Outra história passou-se na Canha, onde a Celeste, durante o ano lectivo se hospedou numa das casas da aldeia. A sogra ou mãe da dona da casa já era velhota e surda, mas assistia às telenovelas todas (na altura brasileiras) inventando os enredos conforme o que via. A velhota nunca tinha passado de Vendas Novas (a uma dúzia de quilómetros) e então comentava: «Não conheço ninguém! Isto não é pessoal (os actores) cá da aldeia. Isto é tudo pessoal de Vendas Novas, pois não são meus conhecidos». Para ela o mundo terminava e não ia além de Vendas Novas.
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2007.08.14
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A imagem é reprodução dum autocolante da «cumperativa» Soldado Luís e uma homenagem a todos quantos, na sequência do 25 de Abril de 1974, acreditaram ser possível construir uma sociedade mais justa, mais humana, mais generosa, sem fome, miséria ou ignorância, miserávelmente enganados pelos que sempre foram ou deixaram-se tornar marionetas, paus mandados ou testas de ferro dos senhores da Terra, que não desistiram do poder que viram escapar-lhe, mas depressa recuperararam. Ou que se venderam por um prato de lentilhas ou por uma carteira mais recheada.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Do Reyno do Algarve

* Victor Nogueira
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1. Quem sabe muito do Algarve é o meu amigo virtual Ludovicus do Momentos e Documentos. Mas atendendo às reclamações da «tia» de Cascais que aos sete anos marchou para o Algarve onde se tranformou em «moura encantada», vou tentar falar sobre o Algarve. Como sabem os mouros primeiro subiram por aí acima levando os bárbaros cristãos de roldão, mas depois tiveram que descer civilizadamente, apesar da barbárie dos Cruzados e das «tropas» portuguesas. Naquilo que veio a ser Portugal, a páginas tantas os árabes começaram a guerrear-se entre si, aliando-se por vezes aos cristãos, para vencerem os seus irmãos de religião. Bondosamente os cristãos arrasaram quase tudo o que lhes lembrasse o Islão e os àrabes, que acabaram por ser expulsos de Portugal conjuntamente com os judeus, pelo cristianíssimo D. Manuel I nas várias alianças entre Castela e Portugal, a ver quem ficava com toda a Península Ibérica. Na Espanha resistiram mais uns séculos, mas agora estão a regressar, em barcos sem condições e procurando passar desapercebidos, quando não morrem em naufrágio.
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Voltando ao Algarve, que já fez parte daquele longo título dos Reis de Portugal e dos Algarves, d'aquem e d'alem mar .... blá, blá, este está separado do Alentejo por várias cordilheiras de montanhas ou serra, que antes da construção da Auto-estrada nos obrigava a penar em infindas e seguidas curvas e contracurvas em estreita estrada e com o consequente e permanente conflito de quem conduzia calmamente com o coração nas mãos e de quem acelerava e fazia as curvas todas a direito. Mas com a auto-estrada, agora é um ver se te avias!
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A primeira vez que fui ao Algarve foi em 1986 porque os meus amigos Manuel e a Anabela entenderam que eu precisava de apoio moral porque acabara de me divorciar. E assim lá marchamos todos com os filhotes à ilharga, o Manuel largado a fazer as curvas a direito e eu nas calmarias a ver se a curva não se transformava por distração numa contracurva, entrando eu por qualquer árvore a dentro. Pelo que fizemos uma combinação: o filho mais novo dele mudou para o meu Renault 5, assumindo o papel de navegador.
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E assim o Manuel arrancou na mecha e eu continuei nas calmarias e nas curvas e contracurvas, até à Praia da Luz em Lagos, onde fiquei a saber que o Infante D. Henrique tinha um mercado, que ainda existe (agora Galeria de Arte), onde se vendiam escravos, e o D. Sebastião uma estátua do Cutileiro em que mais parece um motard do que um guerrreiro, embora me agrade francamente.
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É como cá em Setúbal, só há um monumento digno de nota, o monumento às nacionalizações oferecido pelos operários salvo erro da Setenave, mas estou em minoria. O que me consola é que o ilustre conservador do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, historiador de arte, tem opinião idêntica à minha. Ao Bocage puseram-no em cima dum palito e à Luísa Todi só lhe deixaram a cabeça em cima dum murete. Ao desgraçado do Sá Carneiro também fizeram o mesmo que no Areeiro em Lisboa: cortaram-lhe a cabeça e pespegaram-na pendurada num bloco de pedra. Felizmente alguém teve o bom senso de retirar aquilo da vista do pessoal. Outro monumento horrível em Setúbal é ao 25 de Abril. Mal por mal, antes o erotismo do Cutileiro no cimo do Parque Eduardo VII em Lisboa.
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Bem, mas deixemos estas divagações e regressemos ao antigo Reyno dos Algarves.
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Corremos as praias todas de Lagos a S. Vicente e aquilo era um gelo e um vento agrestes que me faziam lembrar as praias do Norte. Quem terá sido o doido varrido que disse maravilhas das praias do Algarve? Para os «contenentais», o frio e o vento agreste não os fazem sentir fora de «casa». é quase como se estivessem no Norte. Agora um homem nado e criado nos trópicos, em Luanda, aquilo, no que respeita às praias, era e é uma autêntica Sibéria, tal como sucede em Setúbal.
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Como o Manuel é advogado, num dos dias teve de ir ao Tribunal de Faro por causa dum processo e então foi o meu desencanto completo. Era igualzinho às viagens para o Porto quando a autoestrada do Norte acabava em Vila Franca de Xira e recomeçava a 5 (cinco) km do Porto, numa terra cujo nome me não ocorre mas começava por C. Seria Carvalhos? Olhem, não me recordo.
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Pois aquela viagem para Faro pela EN nº qualquer coisa foi um tormento de pára/arranca sem possibilidade de ultrapassagens, Pelo que, tendo saído cedo de Lagos, ainda assim conseguimos chegar a tempo a Faro, onde dei uma pequena volta a pé.
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Ah! Outra «curiosidade». Atravessava-se Portimão e lá de baixo vinham núvens de fumo e de perfume da sardinha assada, que me fez lamentar não me ter precavido com uma máscara anti-gases tóxicos. E então nos restaurantes? Mal abríamos a boca para falar em português olhavam-nos com desprezo, sendo todos mesuras para os «bifes».
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No ano seguinte ficámos acampados em Aljezur, onde a confusão era menor e não havia «bifes». Gostei muito mais de Aljezur embora a água fosse fria e onde se ouvia à boite o contínuo e regular som do marulhar das ondas desfazendo-se na areia da praia.
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2. Passaram-se muitos anos sem que voltasse ao Algarve. Frio por frio, vento gélido por vento gélido, antes a casa de Verão do meu avô materno no Mindelo (Vila do Conde) que a minha mãe herdara e sempre havia mais terras para conhecer e visitar, nos 50 km em redor. Além disso o comboio suburbano (agora metro de superfície) fica a 100 metros e num instante se está em várias zonas do Porto, incluindo a chamada «avenida do bacalhau»
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Até que em 2 mil e troca o passo voltei duas vezes ao Algarve. Da primeira vez fiquei num hotel apartamento em Portimão (Praia da Rocha) e da segunda num aldeamento turístico nos arredores de Tavira. Dizem-me que para esses lados a água é mais quente, mas eu ia com a missão de conhecer o Algarve, especialmente vestígios dos árabes, e assim destas duas vezes percorri à minha vontade e ritmo, de lés a lés, graças à via do infante, onde na altura não se pagavam portagens.
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E foi assim que descobri três Algarves: o de Albufeira até S. Vicente, completamente descaracterizado, o de Albufeita a Castro Marim, ainda com um aspecto humanizado, e a Serra Algarvia, que muita gente desconhece. Fiquei simplesmente apaixonado por Silves, Tavira, Castro Marim e Alcoutim, sem falar na Serra. Não fosse o Algarve uma região com um alto risco de ocorrência de sismos, aliás como Lisboa e Setúbal, e ainda iria acabar os meus dias em Tavira.
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Claro que tenho montes de fotos não digitalizadas, mas outro aspecto que me encantou foi o «floreado» das platibandas e os desenhos nas chaminés. Casas com platibandas «floreadas», «trabalhadas», subsistem apenas duas em Setúbal, uma na Avenida dos Combatentes, outra na Avenida 5 de Outubro. Para além duma chaminé salvo erro quinhentista, na Avenida Luísa Todi, que tem por detrás a Travessa do Feijão. Mas escusam de ir lá em busca de feijão ou qualquer outro alimento, seja em travessa ou não
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Afinal o texto não me saíu humorístico, não sei se devido ao adiantado da hora, se devido ao cansaço. E prontos, «tia» de Cascais transformada em moura encantada, não voltes a dizer que sou mau para ti.
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No Kant_O encontram dois textos sobre a presença árabe em Portugal e sua herança:
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- Silves no contexto poético do Ândalus (03-o3-2007)
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- OS MUÇULMANOS NA PENÍNSULA IBÉRICA (16-01-2007 )
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Encontram-nos facilmente se clicarem no marcador «Islão»

domingo, 12 de agosto de 2007

Quem é e onde pára o criminoso?

* Victor Nogueira
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Pessoalmente não simpatizo com o dr. José Martins nem subscrevo muitas das opiniões políticas nem como por vezes se expressa no seu blog. Nem sei o que o faz correr, se o amor às crianças se à notoriedade. Mas ele há cada estranheza ! Ele é o defensor do sr. Carlos Silvino, embora não das crianças (masculinas) abusadas na única rede pedófila descoberta em Portugal, no Continente e Regiões Autónomas. E por coincidência, está ameaçado de ser expulso da Ordem, com a consequência de não poder exercer advocacia. E pedofilia, só na Casa Pia (masculina) de Lisboa e em nenhuma outra instituição do género, qualquer que sejam os seus responsáveis. Será mesmo assim?
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E vai-se a ver a rede parece ser afinal e apenas um «naperon», com um arguido transformado em bode espiatório - o sr. Carlos Silvino - e outros, enquanto arguidos, pretendendo demonstrar a sua inocência. Esses outros não são propriamente arraia miúda, que com essa os processos não envolvem redes e despacham-se rapidamente os julgamentos, merecendo quando merecem uma notinha de roda-pé na imrensa. Mas dá que pensar na «santidade» e «respeitabilidade» acima de qualquer dúvida envolvendo gente graúda - não aparecem políticos notáveis nem empresários de maior ou menor sucesso, nem certos grupos ou camadas sociais. Mas não só na «santidade» mas também no respeito pelas «miúdas». Quanto a estas, não se descobrem ballets-roses ou similares. Ninguém do jet set que não aparece nas revistas cor-de- rosa ou situado no topo de gama. Nem mulheres arguidas, salvo a D. Gertrudes, uma «Maria Ninguém». Serão estes grupos sociais abençoados e, em consequência, protegidos do MAL e de Belzebu pela Santíssima Trindade?
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Claro que os arguidos «importantes» têm bons advogados que os defendem e daqui surge uma nova interrogação - fazem-no por desinteresse ou amizade, gratuitamente ou a preços simbólicos? Mas se os «notáveis» advogados destes arguidos, por mera hipótese, se fizerem pagar bem ao longo destes anos, deixando talvez para trás outros processos judiciais da carteira, quando e como vão os arguidos pagar-lhes os honorários?
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Há quem queira desacreditar as crianças alegando que actualmente são prostitutos e portanto não merecem credibilidade, não têm direitos nem dignidade humana. O mesmo estilo de pensamento que considera as putas e os homossexuais e travestis como «coisas» que «virilmente» se podem usar, humilhar, agredir, ofe3nder e violentar à vontade porque não são «pessoas». Este é um pensamento claramente classista e/ou fascista. O mesmo que faz a classe dominante desprezar a ralé, mandando dar aos esfomeados e desempregados brioches, como Maria Antonieta rainha de França, ou como em Portugal os agrários mandando os trabalhadores agrícolas desempregados comerem palha. Só que Maria Antonieta e Companhia foram guilhotinados pelo «Terror» da sangrenta Revolução Francesa em 1789, enquanto a classe dominante sobreviveu à «pacífica» e chamada Revolução dos Cravos. A única semelhança é que os "san-cullote» ou o «pé descalço» ou «da ferrugem» acabaram por perder, em França e em Portugal.
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Uma outra reflexão sobre esta montanha que pariu ou pretende partir um ratinho:
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Porque carga de água os arguidos, alguns deles figuras públicas, iam a uma pequena cidade/aldeia como Elvas para abusar das crianças? Naquela «aldeia» ninguém estranhava a movimentação em torno da casa da D. Gertrudes: figuras públicas ou desconhecidos, uns, crianças, outros? Não era mais seguro ficarem-se por Lisboa, «anónima» terra das muitas e desvairadas gentes, como escreveu um notável poeta?
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Uma última questão: interessará ou lucrará alguém com a expulsão do advogado do sr. Carlos Silvino e o seu afastamento «directo» do processo? Se a alguém porventura interesse, a quem?.
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2007.08.12

sábado, 11 de agosto de 2007

Tripas à moda do Porto


* Victor Nogueira
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Esta imagem do trânsito é mesmo elucidativa de como se conduz (!) no Porto, que além disso tem ruas muito estreitas e passadeiras onde os peões são candidatos ao suicídio. Se eu vivesse no Porto, preferia andar de barco rabelo, mas com motor fora de borda por causa das calmarias (não dos automobilistas, mas sim do vento que enfuna as velas, não de cera mas da embarcação).
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O aborrecido era que se acostasse à margem direita desse riacho que é o Douro, comparado com o Tejo, tinha que me estafar para subir aquelas ingremes calçadas. Para baixo poderia vir a rolar, mas como não sou redondo era capaz de ficar estragadote. E então a mania das grandezas que os tripeiros têem ! Sim que têm inúmeras pontezitas. Deixa lá ver; S. João, Freixo, D. Luís, D. Maria e Arrábida.
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Estão todas, não estão? Mesmo contando com o memorial à fatídica Ponte das Barcas e os amarradouros da ponte pênsil, isso nem chega a um quarto da ponte Vasco da Gama !
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Por exemplo. o carro vermelho da frente, pisando o traço contínuo, equidstante das margens para poder evitar qualquer saída da estrada, e com a maralha a querer ultrapassar de qualquer modo, poderia vir à vontade a Lisboa, porque é tudo autoestrada e em chegando, se os nortistas não forem ao Bairro Alto, Alfama e Mouraria, as ruas são suficientemente largas para passearem nas calmarias, mesmo nas horas de ponta! Isto para não falar no Código de Estrada, que é conveniente ser estudado uns dias antes da «descida» ao Sul. Reparem, «descida», porque vir ao Sul é sempre uma subida civilizacional.
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Bem, num aspecto o Porto bate Lisboa, não por causa do Palácio do Freixo mas porque ao lado tem o Museu da Imprensa. Creio que não há outro em Portugal. Pronto, a mui nobre, sempre leal e invicta cidade, para além do coração de D. Pedro IV ali para a Lapa, do grandioso e sempre invejado Futebol Clube do Porto, tem naquele Museu um motivo para o seu «orgulho» de nortista :-)
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Mas voltando ao trânsito e meios de transporte. Aquilo é uma confusão que só visto, com o coração sempre atrofiado e os nervos à flor da pele. Isto para não falar nos nervos de aço!
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Apesar de ter vivido lá muitos anos, agora perco-me por vezes a conduzir no Porto, especialmente com as transformações que fizeram nas circulares.
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E o Metro de superfície que por vezes mergulha literalmente num túnel? Olhem que é complicado perceber como se anda no Metro do Porto. Então aquilo dos bilhetes e dos carregamentos e mudanças de preços quase exige uma licenciatura em Tiragem de Bilhetes.
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E depois como me esqueço do malfadado Cartão Azul sempre que lá vou já tenho uma pequena colecção ali numa gaveta. E depois no Porto buzinam, chamam nomes (como se estivessem a conduzir ou puxar uma carroça e não manobrar um veículo automóvel) põem de fora um ou dois dedos porque têm sempre razão. ultrapassam pela direita, para eles o vermelho é igual ao verde e o laranja não existe, o STOP é para os outros, coitados dos peões nas passadeiras que deviam chamar-se «passagens a ferro» ao menor descuido do confiado peão, para além de nunca abrandarem para deixar o outro automobilista entrar na fila.
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Cá para o Sul somos mais atenciosos e respeitadores do código da estrada. Reconheço isso apesar das minhas costelas tripeiras de Cedofeita (Deve ter sido por isso que nasci adiantado dois meses). Por falar em Cedofeita, os meus pais dizem sempre que são do Porto, mas de Cedofeita. Mistérios para mim insondáveis, tanto mais que a Rua de Cedofeita agora é parcialmente pedonal. Haverá outro Porto para além de Cedofeita? Sim, que dizem que o Porto é mais velho que a Sé de Braga, mas eu nessa altura ainda não era nascido e portanto o meu testemunho neste aspecto é irrelevante. É sempre um testemunho de «ouvi dizer» ou «li algures» , sem o PESO do «eu estava lá e vi com estes olhos que a terra há-de comer».
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Mas confesso que gosto do Porto e se tivesse o clima ameno, o céu azul e a luminosidade de Lisboa, talvez alguém me conseguisse converter de sulista árabe para nortista visigodo.
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2007.08.11
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The last but not the least: gravura gentilmente «cedida» por «@»

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Sobre o Amor e a Amizade

* Victor Nogueira
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Enquanto dura o amor parece infinito, só que tem que ser refeito ou reconquistado ou reconstruído no dia a dia. em cada dia que passa. Só assim a consciência da sua finitude o poderá tornar infinito.
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Quando estudante de Economia em Lisboa, tinha então vinte anos, frequentei um curso intensivo de inglês. A professora, uma jovem inglesa, a Maureen Baltazar, era alegre, encantadora e todos nós gostávamos muito dela. Mas entretanto ela resolveu regressar a Inglaterra, já não me lembro se por se ter entretanto separado do marido português. E o surpreendente para mim era o desgosto e a ideia expressa nas palavras duma das empregadas da escola pelo facto da Maureen abalar, creio que definitivamente, dizendo que mais valia não a ter conhecido porque assim não teria o desgosto de perdê-la. E surpreendia-me esta atitude, pelo que então lhe contrapuz que o que era importante era termos conhecido e convivido com a Maureen, porque a recordaríamos sempre com alegria e ao tempo em que tínhamos estado com ela, porque era um tempo que tinha valido a pena ter sido vivido!

Aparências

* Victor Nogueira
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Se me ficasse apenas pela aparência do que os meus olhos vêm, a neblina e o cinzento que envolvem a cidade prenunciariam um dia frio, de chuva miúdinha. Mas o suor goticular que permanece à flor da pele sem que se evapore indica que o resto do dia, para além de nublado, será quente e húmido; uma boa chuvada seguramente que refrescaria o tempo e afastaria este pesado chumbo que me envolve, que em Luanda, na estação quente, prenunciaria grandes e violentas bátegas de água quando não relampejantes e ensurdecedoras trovoadas. Mas este é um país de brandos costumes, de pequenas tempestades, de meias águas e de meias tintas. E depois nem sequer há os quilómetros de areia de praias para mergulhar como na minha terra perdida. Como se não bastassem os ajuntamentos, as praias da costa da Arrábida estão na sua maioria impróprias para consumo devido ao grau de poluição. De modo que ao fim do dia, após o emprego, resta apenas a água fresca do chuveiro. (MMA - 94.06.15)

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O 1º emprego, a tempo inteiro

* Victor Nogueira
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Estava eu já todo porreiro da vida, de saco aviado, prestes a partir para Lisboa, quando telefonei ao [Aníbal] Queiroga, como combinado. Assim, tive de adiar a viagem e estou aqui na Escola Industrial de Évora há quase 2 horas, primeiro aguardando que chegasse o Presidente da Comissão de Gestão e agora que S.Exa se digne terminar o despacho com o Chefe de Secretaria. Venho falar lhe para saber da hipótese de leccionar "Introdução à Política". Acho que são 31 horas semanais (sendo 10 extraordinárias) o que daria cerca de nove mil escudos mensais. Como é uma hora semanal por turma seria ... 31 turmas por semana, o que daria qualquer coisa como ... mil alunos. Safa! Se não houver que fazer e corrigir exercícios, mal não iria a coisa. Claro que um tipo tem de gramar o mesmo paleio horas seguidas por semana, já que é o mesmo programa para todas as turmas, o que poderá tornar se chato. Por outro lado, como é a mesma matéria teria menos trabalho a prepará la. A ver vamos (embora ficar em Setúbal me seduza mais).
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A merda do despacho não há meio de acabar. Entretanto alguns professores - que chegaram depois de mim - vão entrando e despachando se. (...)
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3 horas! 3 horas foi o tempo que estive aguardando que o dr. Pimentel me recebesse. 2ª feira dar me à a resposta. Embora eu não diga nem que sim nem que não, o Queiroga diz que eu sou é pessimista. A ver vamos. (MCG - 1974.11.27)
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Não sei bem se isto que está em mim é "nervoso" ou ... gripe. Os dados estão lançados e vou para Évora dar aulas na Escola Industrial. O Dr.Pimentel queria que me apresentasse ao serviço já na 3ª feira, a mim convinha me na 4ª e acabou por ficar para 5ª! Vamos lá ver como isto corre. Hoje e amanhã tenho de preparar a lição. Ah!Ah!Ah! (isto é para disfarçar a morte que me vai na alma). Francamente, não me seduz ser professor de meninos! Mas ... podia ser pior! (MCG - 1974.12.02)
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Já hoje me deram o horário ("o senhor doutor para aqui", "o senhor doutor para acolá" - deixarei de ser o Victor contestatário ?), (1) fizeram me as recomendações ("isenção, nada de transformar as aulas em comícios", "CDS não, mas PPD para a esquerda, sim, mas não extrema esquerda" informaram-me do ambiente político (predomina a UEC, há divergências entre os alunos de dia e de noite, por causa da Associação de Estudantes); enfim, eis me apanhado pela engrenagem. (2). Tenho 29 1/2 horas semanais de aulas (não sei quanto será ao fim do mês) (3) e um horário muito sobrecarregado (a maioria das aulas à tarde, 3 à noite, nenhuma ao sábado e 2ª de manhã - "Assim o sr. dr. pode ir para Lisboa". ) Tenho alunos - rapazes e raparigas - desde os 13 aos 30 anos. A maioria entre os 14 os 19. Só à 3ª tenho aulas ás 9 da manhã. (...) Cá recebi hoje no apartado a tua carta cheia de "bons" conselhos (Como se aturar adolescentes e dar "Introdução à Política" for o mesmo que aturar ingénuas criancinhas!) De qualquer modo, obrigadinho. (MCG - 1974.12.05)
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Cá estou eu no 2º dia de aulas, que vão correndo. Não sei qual é a aceitação dos alunos. Ainda ando a fazer "experiências" para ver como hei de dar aulas.(...) (Ah! Não sei se já vos disse que acabei em professor de Vida Política e [de] Introdução à Política) Tenho 28 horas semanais e os cursos gerais e complementares, com alunos e alunas dos 13 aos 27 anos (à noite). Enfim ...Não sei quanto vou receber ao fim do mês. (NSF - 1974.12.09)
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Acho que não tenho feitio para professor. Ou será apenas falta de calo? Dar aulas tem um aspecto positivo: permite me ver as lacunas e imprecisões dos meus conhecimentos. Mas falta me (por quanto tempo?) uma certa disciplina na exposição e no estudo. Não sei se as minhas aulas são boas ou não. Dalgumas gosto - penso que consigo interessar os alunos. Outras sinto-as como um autêntico fracasso. Ainda ando a tactear, a ver como hei de dá-las Tenho de passar a fazer uma exposição prévia - conforme as diversas rubricas do programa - à qual se seguiria um debate - sobre o assunto da exposição ou outros (aqui, pelo menos no princípio, é que a porca torce o rabo, pois um tipo não sabe tudo) Prefiro dar aulas aos miúdos do curso geral do que aos do curso complementar - e ainda menos à noite. Para mim, isto é uma função muito desgastante psiquicamente. Não tenho suficiente frieza emocional e há ocasiões em que não me apetece ir dar aulas. É como se fosse um elástico esticado. Conheço alguns dos professores, que são de duas categorias - jovens ou mães de família. Mas não me sinto muito ligado aos professores; preferia estar do lado dos estudantes. Hoje numa das turmas - a mais sossegada e que me parece esperar algo de mim - disseram me que as aulas deviam ser de diálogo e camaradagem. Mas ... sinto que a aula foi um fracasso. Preciso de preparar melhor as lições e ser mais disciplinado e com maior frieza de espírito, mas falta me muito do material de estudo - parte encaixotado, parte em Lisboa. (MCG - 1974.12.10)
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Tenho tido algumas aulas giras, mas noutras é uma frustração. Algumas são muito barulhentas (p'rá semana isto tem de mudar), outras são porreiras. Gosto mais de dar aulas aos gaiatos. (MCG - 1974.12.11).
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1 - No princípio este tratamento por senhor doutor incomodava-me deveras. Agora já me habituei e por vezes faz jeito, embora goste mais de ser apenas o Victor Nogueira.
2 - Centro Democrático e Social, Partido Popular Democrático
3 - Recebi anteontem o vencimento; apenas as horas normais, a 60 $ 00 (Não recebi os 4 primeiros dias). Creio que o meu vencimento líquido são 6 700 $ 00, aos quais serão de acrescentar as horas extraordinárias, pagas ... a um preço inferior ás normais! Ah!Ah!Ah! Isto é que o Estado é um bom patrão! As extraordinárias devem ser aí mais uns 1 800 $ 00 a 2 100 $ 00. Quanto a 13º mês ... só para o ano. (MCG - 1974.12.21)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Alfabetização


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* Victor Nogueira
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Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (MCG - 1974.11.17)

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Retrato de Aniversariante


Fotografia de Victor Nogueira

inFELICIDADE

* Victor Nogueira
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Ontem, que já é anteontem, falaste sobre a felicidade em contraponto a uma pretensa atitude de infelicidade minha. Não me considero infeliz. Vou vivendo, melhor que muita gente, embora não tão desafogadamente como outros ou do modo que eu preferiria. Diferente da infelicidade é o desencanto pela falta de solidariedade e de humanidade crescentes nesta sociedade em que estamos. E desencanto tenho, por vezes muito, por vezes em demasia. O que não significa que não tenha tido momentos de alegria e serenidade. Alguns deles contigo, apesar de tudo. E talvez parvamente e sem razão eu persiga em ti a crença ou a esperança de que teria sido (seria) possível ter sido (ser) feliz contigo, como amigo ou como amador e ser amado. Mas isto, querida amiga, só teria resposta se outra fosse a nossa relação. A isso (...) só a convivência límpida e no dia-a-dia teria dado resposta.
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Apesar de tudo, acredito que é possível as pessoas serem felizes. Por muito breve que seja a felicidade. Porque entendo que os homens e as mulheres não foram feitos para estarem sozinhos ou viverem solitariamente. Por isso, na breve passagem nossa por este mundo, é preferível, digamos, um ano de felicidade, mesmo que repartida no tempo, a uma vida inteira com medo de perdê-la ou não alcançá-la. Mesmo que tu hoje digas que eras feliz no tempo em que os teus rins funcionavam. Porque muitas vezes te encontrei triste e desanimada, apesar do teu calmo sorriso e de brincares comigo. E nada te impede de vires a ser feliz, comigo ou com outrem, mas sobretudo contigo. Preciso é olhares em frente e não te deixares arrastar pela pena de ti. Porque todos temos limitações maiores ou menores, neste ou naquele campo. Preciso é sabermos aprender a viver com as nossas limitações para ultrapassarmos os muros que nos cercam ou querem levantar ou levantamos à nossa volta. (MMA - 1993.09.16/19)
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Houve na minha vida dois breves tempos de grande alegria, libertação e crença numa vida diferente: os meses a seguir ao 25 de Abril, (quando a alegria e a solidariedade andavam no ar e em cada esquina), e as primeiras semanas de 1986, (quando reatei relações com velhos amigos e te encontrei e contigo a esperança numa outra vida com amizade e carinho). Mas não se concretizaram as promessas que eles continham e hoje está de novo este tempo cinzento e fechado que me cerca. Um tempo retratado num velho poema meu de 1985 [1].
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Notícias do Bloqueio II
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Estão suspensas as palavras
Proibidos os gestos
de ternura, amizade e amor.
O silêncio invade as ruas
entra nas casas
senta-se à mesa da gente.
Que sentido tem dizer
amor
amiga
camarada
companheiro?
Que sentido tem
abrir as mãos e os olhos
e perguntar qual o significado do
que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
de movimento e ruído
enquanto a vida escorre pelos dedos
indiferente
medíocre
submissa. (MMA - 1993.09.23/26)
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Hoje, que te escrevo, é o primeiro dia deste ano de 1994. Hoje, que me lês, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. Cada dia que passa é sempre o primeiro dia do resto de nossas vidas. A única diferença é haver cada vez menos primeiros dias à nossa frente. (MMA - 1994.01.01)
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[1] - ano anterior à nossa separação (minha e da mãe do Rui e da Susana) no Verão de 1986 e divórcio decretado em em 1987.
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