Domingo, Fevereiro 04, 2007
O inicio da guerra em Angola: O 4 de Fevereiro
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Como já deves saber pelos jornais, houve assaltos a vários estabelecimentos de Luanda (cadeias civis, Casa de Reclusão Militar e Quartel da Brigada Móvel da PSP), na madrugada do dia 4 do mês corrente. No dia seguinte, domingo, quando a maioria da população desta cidade acompanhava à última morada os agentes da ordem mortos no dia anterior, alguns agitadores dispararam tiros, entregando‑se a demonstrações de provocação.
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A polícia e o exército intervieram logo, travando luta com os díscolos. Houve dez assaltantes mortos e muitos outros foram presos. Também num outro ponto da cidade houve motins. Vários polícias ficaram feridos. Na quarta‑feira, dia 8, os assaltantes atacaram a cadeia de S. Paulo. Morreram 17 assaltantes e muitos foram feridos, efectuando‑se numerosas prisões, tal como já acontecera no sábado, dia 4. A grande maioria dos assaltantes nativos estava fortemente drogados com “marijuana” e possuíam armas brancas (catanas) e armas de fogo de origem checoslovaca. Entre os assaltantes mortos ou presos havia alguns europeus pintados de preto. A polícia e o exército têm efectuado “rusgas” pelos muceques e prendido numerosos indígenas suspeitos de tomarem parte nos assaltos. Perto do cemitério foram encontrados muitos pretos feridos, tratados por duas feiticeiras, num hospital improvisado. Foram todos presos (1)
.(1) Toda a população branca da cidade foi aos funerais. Estava tudo dentro do cemitério da Estrada de Catete quando alguém gritou Eles venhem aí! começando a ouvir‑se rajadas de metralhadora. A partir daí foram o pânico generalizado e o caos, com as pessoas a correrem desordenadamente, aos gritos, uns para aqui e outros para ali, todos confluindo para o portão principal do cemitério, pequeno para tão grande avalanche. Lá dentro, havia sapatos pelo chão, pessoas correndo com um pé descalço e outras partindo árvores e estacas de sustentação para improvisadas armas. Conseguimos sair, todos juntos, em direcção à carrinha no meio dos inúmeros veículos que estavam cá fora estacionados. De repente ouviram‑se novas rajadas de metralhadora, e aí deitei‑me no chão, esperando que uma cova se abrisse debaixo de mim para me proteger. A viagem de regresso fez‑se a passo de caracol e seguramente que muitos brancos teriam sido chacinados se tivesse mesmo havido um ataque. E a imagem que me ficou, perante o absurdo evidente daquela retirada geral sem qualquer segurança, foi a imagem dum negro desolado à beira da estrada, esfarrapado e ensanguentado. Essa noite e os dias que se seguiram foram de represálias e massacres indiscriminados sobre os negros dos musseques, perpetradas pelos civis brancos armados.
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ADENDA - Antigamente havia quem escrevesse muito e muitas dessas cartas acabam por ser testemunho dos tempos que corriam, interpretados de acordo com os diferentes ângulos de visão, que também ao longo dos tempos podem mudar. Estudando em Angola, de Angola pouco sabíamos, como registo no meu poema Raízes. Lembro-me que na 4ª classe havia um pequeno livro de capa avermelhada dedicado à História de Angola, que começava com a chegada de Diogo Cão ou Paulo Dias de Novais. Para trás nada havia e os feitos «celebrados» eram os dos «descobridores» brancos de Portugal, encarregados de levar a «Fé Cristã» e a «Civilização» aos bárbaros que povoavam África desde tempos imemoriais. Havia salvo erro uma referência à rainha Nzimba Mbandi NGOLA Mas depois, no ensino secundário, Angola desaparecia perante a omnipresença de Portugal Continental,, o «Puto», como se dizia. E no entanto, nos livros em inglês ou em francês que me ofereciam nas datas festivas, Portugal resumia-se quanto muito, a uma escassa meia dúzia de linhas, talvez apenas a Vasco da Gama e Fernão de Magalhães. Afinal, como descobri depois, havia uma outra história e outras culturas e mundividências e o começo da guerra em Angola contra os «brancos» começara muitos séculos antes, praticamente desde a chegada dos portugueses ao território que daria origem a uma colónia denominada Angola, «juntando» povos rivais, cuja divisão se fomentava, dentro do princípio de que para reinar é preciso dividir e acirrar os antagonismos. Mas, mesmo entre os brancos, havia quem quisesse a independência de Angola, cujo desenvolvimento económico a Metrópole coarctava. Mas esta seria para muitos uma independência que lhes permitisse manter a sua situação privilegiada face à esmagadora maioria da população, do mato e dos musseques.
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RAÍZES
"Maianga Maianga
Bairro antigo e popular
Da velha Luanda
Com palmeiras ao luar ..."
''A Praia do Bispo
Cheiinha de graça
De manha á noite
sorri a quem passa ..."
(das Marchas Populares em Luanda)
Longo era o bairro ao longo da marginal
Longo era o bairro do morro de S. Miguel ao morro da Samba
Grande era o bairro e grandes as casas
No meio o bairro operário e a igreja de S.Joaquim,
estreitas as ruas, pequenas as casas.
Nas traseiras, o morro,
no alto o Palácio,
Na frente a larga avenida,
o paredão, as palmeiras e os coqueiros
a praia que já não era do Bispo
mas das pedras, dos limos e dos detritos.
Mais além a ilha que era península
com a sanzala dos pescadores
casas de colmo no areal
da extensa e boa praia
o mar sem fim.
Em Luanda nasci
Em Luanda vivi
Em Luanda estudei
Não Angola mas Portugal
Todos os rios e afluentes
Todas as linhas férreas e apeadeiros
Todas as cidades e vilas
Todos os reis e algumas batalhas
as plantas e animais
que não eram do meu país.
De Angola
pouco sabiamos
até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março
Veio a guerra e
a mentira
que alimenta
a Guerra,
Veio a guerra e a violência
veio a guerra e a liberdade.
Em Évora a 11 de Novembro
Em Luanda a bandeira do meu país
no mastro subiu.
Era o tempo da liberdade e da esperança.
No Porto
Em Lisboa
Em Évora estudei
Em Évora casei
Em Évora vivi e nasceram o Rui e a Suzana.
Em Setúbal moro e no Barreiro trabalho
Perdidos os amigos,
perdida a infância
Estrangeiro sem raízes sou em Portugal.
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