por Victor Nogueira a Quarta-feira, 14 de Setembro de 2011 às 3:24
* Victor Nogueira
É segunda-feira em Évora .O Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou lêm o jornal: "A Bola" ou "O Século". Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas parece me que ficou tudo em águas de bacalhau.
(...) Tirando os jornais, praticamente desde o 25 de Abril nada mais tenho lido; quase não paro em casa e tenho também um certo desassossego em mim, porque o tempo nem sempre tem sido eficazmente aproveitado. Para além disso o tempo dum homem é também para o amor e ternura e estes têm estado ausentes. Enfim... (Sabes, é bom também sentir-se o corpo duma mulher junto a nós, porque o amor e a ternura não são só palavras, muito menos apenas escritas, mas também apossibilidade de se manifestarem nos gestos.)
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Sinto-me alheio ao que se está passando em Portugal. Alheio não porque me desinteresse, mas porque me escapa o significado de muita coisa (desde há dois anos que deixei quase de estudar para compreender a realidade do que me cerca) Sinto-me assim ultrapassado numa altura em que o desenrolar dos acontecimentos exige uma grande lucidez) (MCG - 1974.06.10)
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Hoje esteve um dia bonito e fresco, durante o qual estiveste muitas vezes no meu pensamento. O vento ligeiro agita as antenas de TV no telhado, enquanto andorinhas chilreiam e cruzam o céu azul.
É já ao entardecer. (MCG - 1974.07.14)
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No café, ontem, a "Capital" aberta sobre a mesa, ia lendo a notícia, antes, o discurso do Spínola, uma grande emoção subindo por mim: finalmente a independência para o meu País. Angola livrar-se -á, finalmente, da tutela asfixiante de Lisboa. Mas... quem vencerá? O capitalismo internacional ou os povos de Angola, Guiné e Moçambique? O reconhecimento do direito à independência é já um primeiro passo, mas a luta continuará. Pois é, minha linda, mas não tinha ninguém com quem partilhar a minha alegria. Ao contrário desta malta que, desde há pouco, em longa fila de automóveis, buzinando estridentemente, sobe a rua Serpa Pinto, circundando várias vezes o Giraldo e segue pela R.S. João de Deus. Vão sorridentes e acenantes, agitando bandeiras azuis e brancas, as pessoas concentrando-se sorridentes nos passeios. Pergunto ao meu vizinho o que se passa e a resposta vem breve: "O Juventude" passou à 2ª divisão!" Ah!Ah!Ah!
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Ontem, no comício do PC, ali no Rossio de S. Brás, o Álvaro Cunhal falou na independência dos povos das colónias. Mas nem uma única palavra, ou referência, aos movimentos de libertação: MPLA, FRELIMO, PAIGC! (1) Ainda antes do Álvaro Cunhal falar o palco foi abaixo por duas vezes. Uma multidão imensa concentrava -se em redor do palco, junto ao Monte Alentejano, agitando se inúmeras bandeiras vermelhas do PC. Bem orquestrada, a multidão repetia as palavras de ordem, de punho erguido. Detecto, junto a mim, um grupo que deve ser da "claque". Quando se falam nas torturas sofridas pelo Cunhal e outro comunista, uma mulher ao meu lado diz me: "Coitadinho! Bandidos!" E a multidão grita: "Morte à PIDE!". Dois delegados dos Sindicatos Agrícolas (Évora e Beja) enumeram as quebras dos contratos colectivos de trabalho e o nome dos latifundiários. A multidão grita: "Morte aos cães!" "A terra a quem a trabalha!". Ao meu lado, algumas mulheres dizem: "É assim mesmo!" e "Essa sou eu!", quando se fala em ranchos despedidos. O Álvaro Cunhal cita as lutas revolucionárias dos trabalhadores alentejanos e a "palha" que os latifundiários teriam mandado dar aos trabalhadores que imploravam comida. E a revolta; que enquanto houvesse ovelhas, galinhas e porcos não comiam palha os trabalhadores!
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O Partido faz a sua campanha e no palco estão tipos que já conheço de há muito. Por detrás deles, enormes, em fundo vermelho, as efígies de Marx, Engels e Lenine. A brancura de Évora é agora quebrada por cartazes do PC. Marx, Engels e Lenine enchem as ruas, conjuntamente com cartazes com a foice e o martelo. (MCG - 1974.07.28)
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Numa curva da planície surgem as torres da Sé de Évora, mai lo seu casario branco. Como sempre, não sinto nenhuma alegria ao avistar o "burgo medieval". (MCG - 1974.09.01)
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Fui hoje ao ISESE: aquela malta anda pelos cantos, perguntando uns aos outros (e alguns a mim):"Então, que vamos fazer?" (MCG - 1974.09.02)
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Ainda não é meia noite e já foi tempo de jantar - que saudades do bacalhau cozido com grão! - e andar por aí, vendo as montras e dando umas voltas. As camisolas de gola alta estão caras: aproximadamente 500 paus! No Nazareth, muito "progressivo" - já não há PIDE para revistar-lhe a loja [livraria]; exibem-se, em plena montra, obras de Lenine e revistas de nus femininos, daquelas que após o 25 de Abril povoam os passeios, livrarias e tabacarias, para as pessoas fazerem o gosto ao olho e se irem masturbando, à falta dum corpo que possam amar, numa sociedade hipócrita e farisaica.(...)
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Passo pelas ruas de Évora, debaixo dos arcos [arcadas]. As pessoas cruzam se comigo e do café vêm o vozear e algumas gargalhadas, que extravasam para as ruas, agora cheias de papéis rasgados e com as paredes pintalgadas de cartazes. Évora, a cidade limpinha onde não se viam outrora cartazes, salvo os da ANP (2) em tempos de farsa eleitoral.
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No ISESE o piquete (3) saúda-me calorosamente à minha entrada e, após algumas piadolas - por causa da pró-UNEP (4) - retomam o jogo das cartas. As casas de banho cheiram a ácido úrico. Puseram sofás num corredor do r/c e aí dormem os do piquete.Que os jesuítas consideram ilegal e abusivo. Pela paredes e bancos, o "Revolução", do PRP-BR, o "Luta Popular", do MRPP e comunicados e cartazes do MES e da Associação Portugal China. O ISESE é um reduto anti PC. Para muitos, creio que parece bem e está na moda! (5) (MCG - 1974.11.25/26)
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Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. Talvez que um tipo tendo casa e emprego, a coisa se torne menos monótona. Mesmo assim, acho que preferia mil vezes Setúbal. Tem mais movimento e não parece uma ilha como este burgo medieval. (...) Soou agora o apito do comboio da meia noite. (MCG - 1974.11.28)
1 - Movimento Popular de Libertação de Angola, Frente de Libertação de Moçambique, Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
2 - Acção Nacional Popular, partido único legal, que sucedeu à UN - União Nacional, após a substituição de Oliveira Salazar por Marcelo Caetano na Presidência do Conselho de Ministros anterior ao 25 de Abril.
3 - O ISESE fora ocupado pelos estudantes, na sequência de desacordos com a direcção da Companhia Portuguesa de Jesus, vulgo Jesuítas, detentora do alvará.
4 - pró União Nacional dos Estudantes Portugueses, organismo criado após o 25 de Abril, conotada com o Partido Comunista Português.
5 - MES - Movimento de Esquerda Socialista, MRPP - Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, PC - Partido Comunista Português, PRP-BR - Partido Revolucionário do Proletariado - Brigadas Revolucionárias.
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